Osservatorio delle libertà ed istituzioni religiose

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Osservatorio delle Libertà ed Istituzioni Religiose

Documenti • 9 Marzo 2005

Sentenza 17 febbraio 1993, n.174

Corte costituzionale. Sentenza 17 febbraio 1993, n. 174: “Insegnamento della religione cattolica nella scuola pubblica”.

ACÓRDÃO N.º 174/93
Procº nº 322/88
Rel. Cons. Alves Correia
(Monteiro Diniz)

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I – Relatório.

1. Um grupo de 28 Deputados à Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 1, alínea a), da Constituição [na versão de 1982, a que corresponde, na actual versão decorrente da Leis Constitucionais nºs 1/89 e 1/92, o artigo 281º, nº 2, alínea f)] e do artigo 51º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas dos números – designados por “cláusulas” pelos requerentes – 1º, 6º a 11º, 14º, 20º e 23º da Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, e das normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro.

O pedido alicerça-se nos seguintes fundamentos:

a) O princípio da separação entre a Igreja e o Estado não consente que este assuma como tarefa sua e através de agentes seus o ensino de qualquer religião;
b) Este princípio é nitidamente infringido pela Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, que regulou o ensino da Religião e Moral Católicas no ensino primário, na parte em que prevê que essa disciplina seja ministrada pelos próprios professores do ensino primário (designadamente nas cláusulas 2ª, 10ª e 14ª);
c) Violam igualmente a Constituição as normas das cláusulas 6ª a 10ª da Portaria nº 333/86, que regulam o processo de matrícula, por razões idênticas às que constam do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 423/87, relativamente à norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, aí declarado inconstitucional, com força obrigatória geral;
d) Por outro lado, a Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro, veio instituir inovatoriamente a disciplina de religião e moral católicas nas escolas de ensino superior oficial – as escolas superiores de educação e os centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico -, o que não se encontrava previsto na Concordata de 1940 entre a Santa Sé e a República Portuguesa, nem decorria directamente do Decreto-Lei nº 323/83;
e) A Portaria nº 831/87 é organicamente inconstitucional, por dispor inovatoriamente em matéria regulada pela Lei nº 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), que apenas prevê o ensino religioso nas escolas dos ensinos básico e secundário ( artigo 47º, nº 3), invadindo, assim, a esfera da competência legislativa reservada da Assembleia da República;
f) A mencionada Portaria é ainda inconstitucional, por violar o princípio da separação entre o Estado e as igrejas, dado que, instituindo o ensino da Religião e Moral Católicas naquelas escolas, com vista à formação dos futuros professores do ensino primário, articula-se, como decorre expressamente das cláusulas 1ª e 9ª, com o regime, constante da Portaria nº 333/86,que prevê que a disciplina da religião no ensino primário pode ser assumida pelos próprios professores da escola;
g) Finalmente, a norma da cláusula 7ª da Portaria nº 831/87, segundo a qual os docentes da disciplina de religião beneficiam do estatuto da carreira docente do ensino superior, sendo aliás nomeados pelo Estado, embora sob parecer da Igreja, é igualmente inconstitucional, por violação do princípio da separação.

2. Admitido o pedido, foi notificado o Primeiro-Ministro para sobre ele se pronunciar, no prazo de 30 dias, nos termos dos artigos 54º e 55º da Lei nº 28/82.

Na sua resposta, o Primeiro-Ministro ofereceu o seguinte naipe de conclusões:

a) A Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, bem como a Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro, limitaram-se a regulamentar, sem introduzir qualquer inovação, o Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho;

b) Ora, o Acórdão nº 423/87, do Tribunal Constitucional, que procedeu à análise deste diploma, pronunciou-se pela não inconstitucionalidade dos seus artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º, declarando, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 2º, nº 1;

c) Assim, aquelas Portarias, nas normas regulamentadoras dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei nº 323/83, não enfermam de qualquer forma de inconstitucionalidade;

d) As cláusulas 6ª a 10ª da Portaria nº 333/86, que regulamentavam a norma contida no artigo 2º, nº 1, daquele Decreto-Lei, foram já revogadas pela Portaria nº 344-A/88, pelo que o pedido, nesta parte, se encontra prejudicado.

3. Concluída a discussão do memorando apresentado pelo relator e tomada a decisão do Tribunal, foi aquele substituído pelo primeiro juiz vencedor, para efeitos de elaboração do acórdão, nos termos do artigo 65º, nº 3, da Lei nº 28/82.

4. A primeira tarefa que imediatamente se depara ao Tribunal é a da delimitação do objecto do pedido que lhe vem apresentado e consequente definição do elenco das normas sobre as quais se vai debruçar.

As normas cuja constitucionalidade é questionada pelos requerentes constam de dois diplomas regulamentares – as Portarias nºs 333/86, de 2 de Julho, e 831/87, de 16 de Outubro.

Quanto à primeira, os requerentes indicam, no primeiro parágrafo da petição, as normas dos nºs. 1º, 6º a 11º, 14º, 20º e 23º. Deste leque de normas devem ser, no entanto, excluídas as constantes dos nºs 6º a 10º, respeitantes ao processo de matrícula na disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário [hoje, 1º ciclo do ensino básico – cfr. o artigo 8º da Lei nº 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo)], já que elas foram revogadas e, consequentemente, banidas do ordenamento jurídico, pela Portaria nº 344-A/88, de 31 de Maio – diploma emanado, como se refere no respectivo preâmbulo, em execução da declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, operada pelo Acórdão nº 423/87 -, ou seja, numa data anterior à da entrada no Tribunal Constitucional do requerimento iniciador do presente processo (concretamente, em 11 de Julho de 1988).

Mas, a par da exclusão acabada de referir, entende o Tribunal que às normas acima mencionadas da Portaria nº 333/86 deve aditar-se, para efeitos da determinação do âmbito do pedido, a norma do nº 2º. Com efeito, embora os requerentes não a incluam na lista do primeiro parágrafo do requerimento, não deixam de a ela se referir expressamente no parágrafo quinto – ao qual corresponde a alínea b) dos fundamentos do pedido acima enunciados -, precisamente quando escrevem que o princípio da separação entre a Igreja e o Estado é infringido pela Portaria nº 333/86, “na parte em que prevê que essa disciplina seja ministrada pelos próprios professores do ensino primário (designadamente nas cláusulas 2ª, 10ª e 14ª)”. [Anote-se que a referência à cláusula 10ª constitui manifestamente um “lapsus calami”, já que é o nº 11º, e não o nº 10º, que versa sobre os modos de ocupação dos alunos que não frequentem a disciplina de Religião e Moral Católicas , enquanto decorrer a aula, quando a sua leccionação estiver a cargo do professor da turma].

Quanto às normas da Portaria nº 831/87, o requerimento é inequívoco quanto à abrangência de todas elas: no primeiro parágrafo daquele documento solicita-se a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, “das normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro”; os requerentes referem-se, quase sempre, àquele diploma de uma forma genérica – só uma vez individualizam uma das suas normas (a do nº 7º); finalmente, os fundamentos de inconstitucionalidade por eles apontados, designadamente os de natureza orgânica, são de molde a afectar todo o diploma.

Concluir-se-á , então, que o objecto do presente processo de fiscalização sucessiva de constitucionalidade abrange as normas dos nºs. 1º, 2º, 11º, 14º, 20º e 23º da Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, e todas as normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro.

II – Fundamentos.

5. As normas da Portaria nº 333/86 submetidas à sindicância deste Tribunal dispõem do modo seguinte:

“1º. A disciplina de Religião e Moral Católicas é, pela sua natureza e na observância das disposições legais vigentes, da responsabilidade da igreja católica, faz parte integrante do currículo do ensino primário, ao mesmo nível das demais disciplinas, e a sua leccionação regula-se pelo estabelecido na presente portaria.

2º. No caso de o professor da turma assumir a docência da disciplina de Religião e Moral Católicas, a mesma será ministrada, durante a semana, no tempo lectivo mais adequado sob o ponto de vista da articulação pedagógica da planificação escolar.

11º. Quando a disciplina de Religião e Moral Católicas estiver a cargo do professor de turma, os alunos que a não frequentem deverão enquanto decorrer a aula:

a) Ser distribuídos, em grupos, por outras turmas a fim de serem ocupados em actividades escolares;

b) No caso de não ser possível aplicar o estabelecido na alínea anterior deverão os alunos ser ocupados pelos pais, encarregados de educação ou outros elementos da comunidade.

14º. A disciplina de Religião e Moral Católicas será ministrada por uma das pessoas a seguir mencionadas:

a) Professor do ensino primário;

b) Pároco da freguesia ou outra pessoa idónea.

20º. O programa da disciplina de Religião e Moral Católicas é da responsabilidade do episcopado, elaborado pelos serviços competentes da Igreja e enviado ao Ministério da Educação e Cultura para oficialização e publicação, sempre que possível, em conjunto com os programas das restantes disciplinas.

23º. O apoio pedagógico e a formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas serão facultados pelos serviços do Ministério da Educação e Cultura, em condições idênticas às previstas para as outras disciplinas”.

Na óptica dos requerentes, todas estas normas, em especial as dos nºs 2º, 11º e 14º, que prevêem a possibilidade de o ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas ser ministrado pelos próprios professores do ensino primário, são inconstitucionais, por atentarem contra o princípio da separação entre as igrejas e o Estado, condensado no nº 4 do artigo 41º da Constituição. É este um vício que, no caso de proceder, inquinará aquelas normas de inconstitucionalidade material.

Mas, antes de analisar a questão da eventual inconstitucionalidade material das normas mencionadas, importa averiguar se elas violam normas ou princípios constitucionais diversos daqueles que foram invocados pelos requerentes. É o que vai fazer-se, indagando se as normas acima transcritas infringem (ou não) os artigos 115º, nº 5, e 168º, nº 1, alínea b), da Lei Fundamental, isto é, se enfermam (ou não) de inconsti- tucionalidade orgânica.

6. As normas questionadas da Portaria nº 333/86, de 2 de Julho, e os artigos 115º, nº 5, e 168º, nº 1, alínea b), da Constituição

6.1. A Portaria nº 333/86 foi editada com fundamento no disposto no artigo 5º, nº 3, do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, e na alínea c) do artigo 202º da Constituição e teve como finalidade “estabelecer as normas adequadas à leccionação, no ensino primário, da disciplina de Religião e Moral Católicas”.
O Decreto-Lei nº 323/83 procedeu à regulamentação do preceito concordatário (artigo XXI da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, de 7 de Maio de 1940) no que respeita à leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas. É composto por seis artigos, dispondo o artigo 5º o seguinte:

“1 – Os professores de Religião e Moral Católicas serão contratados ou nomeados mediante proposta da autoridade eclesiástica competente, de acordo com a legislação em vigor sobre habilitações.

2 – Os professores da disciplina de Religião e Moral Católicas fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço, gozando dos direitos e deveres inerentes à sua função docente.

3 – As condições em que o ensino da Religião e Moral Católicas será ministrado nas escolas primárias serão objecto de regulamentação por portaria do Ministro da Educação”.

A questão da constitucionalidade da norma acabada de reproduzir do Decreto-Lei nº 322/83, bem como das restantes normas deste diploma legal, foi analisada por este Tribunal, no seu Acórdão nº 423/87 (publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Novembro de 1987), tendo-se aí concluído que as normas daquele diploma legal – com excepção da norma do artigo 2º, nº1 – não infringem qualquer norma ou princípio constitucionais.
Tendo em atenção que o Decreto-Lei nº 323/83 abrange “uma temática com incidência no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, onde se inscrevem a liberdade de religião e a liberdade de aprender e ensinar, e com incidência também no sistema de ensino”, e que aquele diploma legal foi editado pelo Governo sem apoio em credencial parlamentar, questionou o Tribunal, naquele aresto, se não teria havido violação das normas constitucionais que definem a competência da Assembleia da República.

A resposta foi negativa, tendo o Tribunal, em determinado passo, ponderado:

“… como foi entendimento da Comissão Constitucional e continua sendo deste Tribunal, o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da competência parlamentar não determina, por si só e automaticamente, a verificação de inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, desde que tais normas não criem um ordenamento diverso do já existente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente, é de entender, em tais circunstâncias, não existir invasão daquela esfera de competência reservada.
Para além disso, importa sublinhar que no âmbito da reserva legislativa não devem incluir-se os temas que, por definição, não respeitam ao teor essencial das matérias ali integradas, isto é, aqueles aspectos que, pelo seu carácter adjectivo e neutral, em nada influenciam a sua dimensão e intensidade reguladora”.

E depois de proceder a uma “acareação” do articulado do Decreto-Lei nº 323/83 com o ordenamento jurídico anterior, concluiu o aresto que estamos a seguir de perto:

“… pode dizer-se que o articulado do Decreto Lei nº 323/83, no tocante a matéria de direitos, liberdades e garantias, salvaguardada a norma do artigo 2º, nº 1, que se tem por organicamente inconstitucional, é repetitivo de diplomas legais anteriores, não introduzindo inovações ou modificações relevantes na ordem jurídica vigente. Com efeito, em boa verdade, o Governo não legislou ex novo, antes se limitando a reproduzir, se bem que revestidas aqui e ali de nova roupagem, normas já insertas no ordenamento jurídico, pelo que a “sistematização” intentada redundou afinal em que tudo continuasse na mesma, como se não tivesse existido edição de um acto normativo.
E porque não se considera a matéria contida na norma do artigo 5º, mesmo a aceitar-se o seu carácter inovatório, o que não se concede, como integrativa das “bases do regime e âmbito da função pública”, pode extrair-se a conclusão final de, no Decreto-Lei nº 323/83, apenas padecer de inconstitucionalidade orgânica … a disposição do nº 1 do seu artigo 2º”.

O juízo de não inconstitucionalidade orgânica formulado pelo Tribunal Constitucional respeitante às normas dos vários números do artigo 5º do Decreto-Lei nº 323/83, em especial à do seu nº 3, fornece úteis subsídios para a resolução do problema que agora o Tribunal tem entre mãos.

Com efeito, na decisão de não inconstitucionalidade orgânica da norma do nº 3 do artigo 5º daquele diploma legal vai implícita a aceitação pelo Tribunal de que “as condições em que o ensino da Religião e Moral Católicas é ministrado nas escolas primárias”, apesar de se conexionarem com matéria própria da competência reservada da Assembleia da República (artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição),podiam ser disciplinadas num instrumento normativo derivado, como é o regulamento. O Tribunal entendeu, assim, ainda que apenas indirectamente, que aquela norma não era inconstitucional pelo facto de não conter toda a regulamentação das condições da ministração do ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas primárias e remeter a regulação desses aspectos para uma portaria a emanar pelo Ministro da Educação.

6.2. Com o acolhimento pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 423/87, da ideia de que a matéria das condições a que deve obedecer o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, referida no artigo 5º, nº 3, da Decreto-Lei nº 322/83, não faz parte do núcleo das escolhas primárias que devem ser reservadas à normação originária do poder legislativo, não fica automaticamente resolvida a questão da constitucionalidade orgânica das normas acima apontadas da Portaria nº 333/86.

Na verdade, enquadrando-se, como se viu, a temática da leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas na “reserva do parlamento”, entendida como maneira superlativa da reserva da lei [cfr. R. Ehrhardt Soares, Princípio da Legalidade e Administração Constitutiva, Separata do Vol. LVII (1981) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1982, p. 15), tem de averiguar-se se as normas agora postas em crise da Portaria nº 333/86 possuem um carácter meramente secundário, traduzido num nexo funcional ou de derivação lógica relativamente ao Decreto Lei n.º 323/83, pois é esse um requisito indispensável para evitar a sua inconstitucionalidade orgânica.

É que, conforme vem sendo defendido pacificamente pela nossa doutrina (cfr. A. Rodrigues Queiró, Teoria dos Regulamentos, I Parte, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXVII, p. 17, e Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976,p.437, 438; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 799; J. M. Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual no Contrato Administrativo, Coimbra, Almedina, 1987, p. 240,241, nota 402, e 251 – 257; e M. Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1980, p. 111), no domínio da “reserva de lei” apenas são admissíveis regulamentos governamentais de execução. Nas matérias reservadas pela Constituição à competência legislativa da Assembleia da República – que constituem, nas palavras de A. R. Queiró, um domínio legislativo por excelência -, não pode o Governo administrador emanar normas regulamentares que vão além da mera execução ou pormenorização da disciplina contida em lei anterior.
Também nos direitos francês, italiano e alemão é geralmente aceite a legitimidade constitucional de regulamentos em matéria de reserva de competência legislativa, desde que se trate de regulamentos subordinados ou de execução das leis.
Assim, em França, considera-se que, nas matérias reservadas pelo artigo 34º da Constituição ao Parlamento, dispõe o Governo de um “poder regulamentar” com um “domínio residual”: o das providências de aplicação que o legislador omitiu – o qual pode ser usado, quer a convite do legislador, quer espontaneamente (cfr. Jean Rivero, Direito Administrativo, trad. port., Coimbra, Almedina, 1981, p. 68-82, e G. Vedel / P. Delvolvé, Droit Administratif, Paris, PUF, 1982, p. 81, 82, e 293,294). Em Itália, é claramente maioritária a doutrina que admite os regulamentos subordinados no âmbito da reserva de lei, desde que apenas contenham “normas executivas” e não já integrativas (cfr.Lorenza Carlassare, Regolamenti dell’ Esecutivo e Principio di Legalità, Padova, Cedam, 1966, p. 219-221). Na Alemanha, entende-se que, mesmo sobre matérias objecto de reserva absoluta de competência legislativa do Parlamento (Parlamentsvorbehalt),podem as leis ser regulamentadas,desde que por regulamentos meramente executivos (gesetzesdurchführenden Rechtsverordnungen), isto é, que não contêm novas obrigações, antes se limitam a pormenorizar o regime das obrigações fixadas por lei (cfr. H. Wolff / O. Bachof, Verwaltungsrecht I, 9ª ed., München, Beck, 1974, p. 132, 133).
Na mesma linha, vem decidindo este Tribunal que a própria regulamentação (e não apenas a restrição) dos direitos, liberdades e garantias tem de ser feita por lei, ou então com base na lei, mas sempre em termos de aos regulamentos da Administração não poder caber mais do que o estabelecimento de meros pormenores de execução ( cfr. os Acórdãos nºs 74/84 e 248/86, publicados no Diário da República, I Série, de 11 de Setembro de 1984 e de 15 de Setembro de 1986, respectivamente. Para uma crítica à doutrina destes arestos, defendendo que o princípio da reserva de lei não deve valer nos mesmos termos perante a Administração Central e perante a Administração Local, devido ao facto de esta gozar de um poder de autonormação constitucionalmente consagrado, cfr. J. C. Vieira de Andrade, Autonomia Regulamentar e Reserva de Lei, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró – 1986″, Coimbra, 1987, p. 9 ss.).

Afonso Queiró caracteriza os regulamentos de execução como normas da Administração Pública que visam “assegurar a fidelidade ou, digamos, a conformidade à vontade do legislador, na medida em que esta seja relativamente obscura ou lacunosa. Essas providências – os regulamentos de execução – não virão desempenhar a função atribuída constitucionalmente ao legislador, que é a de regular inicial e primeiramente certas relações jurídicas. Os regulamentos de execução não se substituem em nenhuma medida à lei. Rigorosamente, não dão vida a nenhuma regra “de fundo”, a nenhum preceito jurídico “novo” ou originário: limitam-se a “repetir” os preceitos ou regras de fundo que o legislador editou – só que de uma maneira clara ou de toda a maneira mais clara.

Mas a falta de clareza pode resultar de uma carência de minúcia ou de pormenor na enunciação dos regimes jurídicos figurados ou estabelecidos. Ao legislador pode justamente ter faltado rigor, imaginação ou capacidade de ideação suficientes para dizer tudo aquilo que afinal de contas quis e deveria dizer. Ao executivo caberá então ir um pouco além da simples interpretação ou repetição por outras palavras da vontade do legislador – e cumprir-lhe-á, no exercício da sua natural competência de executar as leis com exactidão e uniformidade, enunciar os pormenores e minúcias do regime que o legislador involuntariamente omitiu (aquilo que em França se chamam normalmente “as modalidades de aplicação” das leis a aplicar).[…] Não se trata de regulamentos “complementares” porque, por conceito, estes são indispensáveis à execução das leis, enquanto os regulamentos executivos são necessários à boa execução delas” (cfr. Teoria dos Regulamentos,cit., p. 9).

Tomando como base este conceito de regulamentos de execução, está o Tribunal em condições de afirmar que as normas questionadas da Portaria nº 333/86 têm, de algum modo, o seu conteúdo predeterminado pela norma ou pelo conjunto de normas executadas – as do Decreto-Lei nº 323/83 -, não sendo, por isso, inconstitucionais, por terem a sua credencial no artigo 202º, alínea c), que atribui ao Governo competência, no exercício de funções administrativas, para “fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis”, preceito este que, como decidiu este Tribunal no Acórdão nº 1/92 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 20 de Fevereiro de 1992), não pode ser esvaziado de sentido pelo artigo 115º, nº 5, da Constituição.
As normas acima mencionadas da Portaria nº 333/86 não se encontram, assim, em rota de colisão com os artigos 115º, nº 5, e 168º, nº 1, alínea b), da Constituição, porque não contêm normação inovatória, de carácter interpretativo ou integrativo, em área coberta pela reserva de lei. Importa, no entanto, demonstrar esta última asserção, confrontando se as normas impugnadas da Portaria nº 333/86 com os preceitos do Decreto-Lei nº 323/83 que constituem o seu quadro de referência ou a sua matriz.

6.3. Assim, o nº1º limita-se a repetir ou a reafirmar três aspectos respeitantes ao ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas públicas, que já constam do Decreto Lei nº 323/83: em primeiro lugar, que o ensino daquela disciplina é ministrado nas escolas primárias aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, manifestarem expressamente esse desejo – princípio que resulta já dos artigos 1º e 2º desse diploma (na parte subsistente após a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, operada pelo Acórdão nº 423/87) e do artigo XXI da Concordata; em segundo lugar, que o ensino daquela disciplina é da responsabilidade da Igreja Católica (a significar que se trata de um ensino da Igreja Católica na escola e não de um ensino do Estado na escola) – aspecto que já se encontra no artigo 4º, nº1, do Decreto-Lei nº 333/86; e, em terceiro lugar, que a disciplina faz parte integrante do currículo do ensino primário – característica apontada pelo artigo 3º, nº 1, daquele diploma legal. É, assim, manifesto que o nº 1º da Portaria nº 333/86 não encerra qualquer opção fundamental que não esteja já plasmada no diploma legal regulamentado.

O nº 20º da Portaria nº 333/86 reitera um princípio vertido no artigo 4º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 323/83, consistente em o programa da disciplina de Religião e Moral Católicas ser da responsabilidade do episcopado, elaborado pelos serviços competentes da Igreja e enviado ao Ministério da Educação e Cultura para oficialização e publicação, sempre que possível, em conjunto com os programas das restantes disciplinas.
É certo que a alínea a) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 323/83 apenas se refere à publicação pelo Ministério da Educação dos programas da disciplina de Religião e Moral Católica, conjuntamente com os programas das restantes disciplinas – a qual tem lugar após a elaboração dos programas pela autoridade eclesiástica competente -, ao passo que no nº 20º da Portaria nº 333/86 encontramos, ao lado daquele vocábulo, o termo oficialização. Todavia, o Tribunal não atribui significado particular a este acrescentamento. Com efeito, a publicação pelo Ministério da Educação do programa da disciplina da Religião e Moral Católicas é uma simples consequência lógica da sua integração no currículo escolar do ensino primário (com a qual, como referiu o Acórdão nº 423/87, se pretendeu “dar seriedade e rigor” àquela disciplina), tendo como finalidade garantir o conhecimento do conteúdo da disciplina pelos professores, pais e encarregados de educação, de modo a que os primeiros fiquem habilitados a tomar uma decisão consciente sobre a aceitação ou não da leccionação da disciplina e os restantes a optar sobre a inscrição ou não na disciplina dos seus filhos ou educandos. O conceito de oficialização quer significar que a divulgação é feita por uma entidade oficial ou pública (traduzindo, assim, uma realidade idêntica à da publicação) e, bem assim, que o programa da disciplina de Religião e Moral Católicas aprovado pelas entidades eclesiásticas competentes é o programa oficial (no sentido de único), mas não leva implicada qualquer ideia de que o programa da disciplina de Religião e Moral passa por um juízo de assentimento ou de concordância por parte do Ministério da Educação, em termos de o Estado ficar co responsabilizado em relação a ele.

No que respeita ao nº 23º, o seu conteúdo está pré-determinado pelo artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 323/83, que estatui o seguinte: “A disciplina de Religião e Moral Católicas, salvaguardado o seu carácter específico, está sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares, nomeadamente no que se refere às condições gerais de matrícula e apoio pedagógico devido a alunos e docentes”.

Dir-se-á, no entanto, em desabono desta posição, que a norma do nº 23º da Portaria nº 333/86, na parte em que prevê que a formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas será facultada pelos serviços do Ministério da Educação, em condições idênticas às previstas para as outras disciplinas, representa uma estatuição diferente e alargada relativamente à que consta do artigo 3º, nº2, do Decreto-Lei nº 323/83, que apenas permite o apoio pedagógico a alunos e docentes. Esta objecção não procede, como se demonstrará de seguida.
Pode dizer-se, desde logo, que ela não toma em devida conta o enunciado linguístico do artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 323/83, sobretudo a utilização do advérbio “nomeadamente”, a significar que os aspectos relacionados com as “condições gerais de matrícula” e “apoio pedagógico” a alunos e docentes não esgotam o âmbito do apoio que os serviços do Ministério da Educação podem (devem) dar ao ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas. São possíveis outros apoios, para além daqueles, desde que idênticos aos facultados para as outras disciplinas. Ora, se o Ministério da Educação faculta formação aos professores no domínio das disciplinas do ensino primário, também deve criar condições para que os professores da disciplina de Religião e Moral Católicas tenham acesso a formação fornecida directamente pela entidade eclesiástica ou por pessoas por esta expressamente indicadas, sob pena de aquela disciplina não ficar “sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares” do ensino primário.
Depois, ainda que se entendesse que o artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 323/83 apenas permite o “apoio pedagógico” aos professores da disciplina de Religião e Moral Católicas, e não já o apoio à sua “formação” (o que não se concede), ainda assim não poderia concluir-se pelo carácter inovatório da norma do nº 23º da Portaria nº 333/86, em face daquela disposição legal. Na verdade, o conceito de “apoio pedagógico” pode ser entendido em sentido amplo, em termos de nele caber, se não toda e qualquer formação, pelo menos a “formação pedagógica”, isto é, aquela que tem como finalidade a ministração de métodos e técnicas de ensino. De acordo com este entendimento, a referência no nº 23º da Portaria nº 333/86 à “formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas” não será um plus de regulamentação em relação ao estatuído no nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 323/83, mas antes uma mera explicitação de algo que se integra no conceito de “apoio pedagógico” utilizado naquela disposição legal.

Por fim, a formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas, a que faz referência o nº 23º da Portaria nº 333/86, não é uma formação fornecida por monitores indicados ou escolhidos pelos serviços do Ministério da Educação. Não é uma formação pela qual o Estado se responsabilize directa ou indirectamente. É uma formação da responsabilidade da Igreja Católica, no sentido de que os formadores são escolhidos ou indicados por esta entidade.

O nº 23º da Portaria não determina, pois, que os serviços do Ministério da Educação forneçam formação aos professores de Religião e Moral Católicas, mas antes que os mencionados serviços facultem àqueles docentes “condições logísticas” para frequentarem acções de formação promovidas pelas entidades eclesiásticas competentes [v.g. através da concessão de dispensas de serviço aos docentes que pretendam frequentar acções de formação, do custeamento de despesas ou do pagamento de ajudas de custo aos mesmos e (ou), ainda, do pagamento das remunerações dos monitores].

O nº 14º da Portaria nº 333/86 estabelece que a disciplina de Religião e Moral Católicas será ministrada ou pelo professor do ensino primário ou pelo pároco da freguesia ou outra pessoa idónea. Em qualquer dos casos, refere o nº 15º que o responsável pela leccionação será proposto pelo serviço diocesano à direcção escolar respectiva. Nos termos daquela disposição, a entidade eclesiástica competente pode propor como docente da disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário ou o professor deste grau de ensino (sendo nesta variante concebíveis três situações: a primeira em que o professor primário lecciona aquela disciplina a alunos da sua própria turma; a segunda em que o professor primário assume o encargo de leccionar a disciplina de Religião e Moral Católicas a alunos de outra turma da mesma escola; e a terceira em que o professor primário colocado numa escola lecciona aquela disciplina em outra escola) ou o pároco da freguesia ou outra pessoa idónea.
Ora, as opções sobre quem pode ser professor da disciplina de Religião e Moral Católicas – o professor primário (isto é, alguém que já pertence ao corpo docente do estabelecimento de ensino, no caso de ocorrer a primeira ou a segunda situações anteriormente apontadas) ou o pároco da freguesia ou outra pessoa idónea (ou seja, alguém que ainda não pertence ao corpo docente de determinada escola primária) – e a quem compete fazer a indicação do professor – essa indicação há-de ser sempre da responsabilidade da autoridade eclesiástica competente – não foram adoptadas ex novo pelo número 14º da Portaria nº 333/86. As mesmas já se encontram, nas suas linhas essenciais, nos nºs. 1 e 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 323/83 e no artigo XXI da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa. De facto, o artigo 5º, nº 1, daquele diploma legal estabelece que “os professores de Religião e Moral Católicas serão contratados ou nomeados mediante proposta da autoridade eclesiástica competente, de acordo com a legislação em vigor sobre habilitações”; e o nº 2 do mesmo preceito estatui que “os professores da disciplina de Religião e Moral Católicas fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço, gozando dos direitos e deveres inerentes à sua função docente”. E na parte final do artigo XXI da Concordata determina-se que “… para o ensino da religião católica, o texto deverá ser aprovado pela Autoridade eclesiástica e os professores serão nomeados pelo Estado de acordo com ela; em nenhum caso poderá ser ministrado o sobredito ensino por pessoas que a Autoridade eclesiástica não tenha aprovado como idóneas”.
Ora, as disposições acabadas de transcrever, atenta a sua formulação genérica, abarcam tanto as hipóteses em que o professor da disciplina de Religião e Moral Católicas é uma pessoa que ainda não pertence ao corpo docente da escola primária, como aquelas em que o mesmo já integra o núcleo de docentes do referido estabelecimento de ensino.

Finalmente, as normas dos nºs 2º e 11º são tipicamente organizatórias e disciplinam, na sequência da habilitação normativa constante do nº 3 do artigo 5º do Decreto Lei nº 323/83, as condições de ministração do ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário, quando a sua docência for assumida pelo professor da turma. Elas encerram preceitos meramente executivos, pois referem-se aos pormenores técnicos relacionados com a organização do ensino da disciplina de Religião e Moral quando o professor desta for simultaneamente o professor das outras disciplinas na mesma turma.
A norma do nº 2º estabelece que, ocorrendo a circunstância de o professor da turma assumir a docência da disciplina de Religião e Moral Católicas, a mesma será ministrada, durante a semana, no tempo mais adequado sob o ponto de vista da articulação pedagógica da planificação escolar. Determina ela que a leccionação daquela disciplina deve ser ministrada durante o período normal de funcionamento da escola – é esta uma consequência do princípio da equiparação da disciplina de Religião e Moral Católicas ao regime das restantes disciplinas curriculares, plasmado no nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 323/83 – e no tempo lectivo mais adequado, sob o ponto de vista da articulação pedagógica da planificação escolar (por exemplo, escolhendo-se tempos lectivos no início ou no termo do período diário escolar).

Por sua vez, o normando do nº 11º estatui sobre as modalidades de ocupação dos alunos que não frequentem as aulas da disciplina de Religião e Moral Católicas, quando a leccionação couber ao professor da turma. Também esta norma tem a ver directamente com as condições da organização do ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas primárias e, por isso, ela é meramente executiva. Com esta afirmação não pretende o Tribunal desvalorizar o significado, no contexto da liberdade de consciência e de religião e da liberdade de educação dos filhos pelos pais, das ocupações alternativas dos alunos que não frequentam as aulas da disciplina de Religião e Moral Católicas, explicitadas nas alíneas a) e b) do nº 11º da Portaria nº 333/86, tema que será abordado um pouco mais à frente. Mas o que o Tribunal rejeita é que se possa ver na norma do nº 11º um preceito que não se limita a estabelecer pormenores organizativos relacionados com o ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas primárias – ainda que na vertente da disciplina das actividades alternativas destinadas aos alunos cujos pais não optaram pela inscrição dos seus filhos na disciplina de Religião e Moral Católicas.

7. As normas impugnadas da Portaria nº 333/86 e os princípios constitucionais da liberdade religiosa, da separação entre as igrejas e o Estado, da não confessionalidade do ensino público e da igualdade

7.1. O artigo 41º, nº 1, da Constituição consagra a liberdade de religião como um direito fundamental do cidadão, a qual se caracteriza como a liberdade de ter uma religião, de escolher uma determinada religião e de a praticar só ou acompanhado por outras pessoas, de mudar de religião e de não aderir a religião alguma (cfr. J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2ª ed.,Coimbra Editora, 1984, p. 250; António Leite, A Religião no Direito Constitucional Português, in Estudos sobre a Constituição, Vol. II, Lisboa, Petrony, 1978, p. 265 ss.; José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1992, p. 226; e Luis Vicente Cantín, Naturaleza, Contenido y Extensión del Derecho de Libertad Religiosa, Madrid, Civitas, 1990, p. 18).
A liberdade de religião comporta simulta- neamente uma dimensão negativa e uma dimensão positiva (cfr. Jorge Miranda, Direitos Fundamentais – Liberdade Religiosa e Liberdade de Aprender e Ensinar, in Direito e Justiça, Vol. III, 1987-1988, p. 50).
Na primeira dimensão, a liberdade de religião implica uma superação do poder que o príncipe detinha de definir a religião dos súbditos, de acordo com a máxima “cuius regio eius religio”, a qual constituía uma característica do Estado absolutista dos séculos XVII e XVIII (cfr. Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, trad. portuguesa, Lisboa, 1974, p. 136), e caracteriza-se, acima de tudo, por uma “imunidade de coacção”, no sentido de que nenhuma entidade pública ou privada pode impor a outrem a adesão e a prática de uma qualquer religião.
Na sua componente negativa, a liberdade religiosa garante ao cidadão uma “esfera de autonomia frente ao Estado” e implica que este não pode arrogar-se o direito de impor ou de impedir a profissão e a prática em público da religião de uma pessoa ou de uma comunidade.
Da garantia constitucional da liberdade de religião decorre que o Estado deve assumir-se, em matéria religiosa, como um Estado neutral (princípio da separação entre as igrejas e o Estado – artigo 41º, nº 4, da Constituição). Aquele não pode arvorar-se em Estado doutrinal, nem atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura de acordo com directrizes religiosas (artigo 43º, nº 2, da Lei Fundamental) ou de organizar e manter um ensino público confessional (princípio da não confessionalidade do ensino público – artigo 43º, nº 3, da Constituição). Com efeito, qualquer forma de dirigismo cultural fere o bem comum e mina os alicerces do Estado de direito. O Estado não pode, pois, impor aos cidadãos quaisquer formas de concepção do homem, do mundo e da vida.
O facto, porém, de o Estado dever observar quanto às igrejas uma regra de separação e, quanto ao ensino público, uma postura de a – confessionalidade não significa que ele não possa – e deva – colaborar com as igrejas na ministração de ensino religioso nas escolas públicas.

A circunstância de o Estado ser um Estado não confessional (princípio da laicidade) não implica que este, sob pena de vestir a roupagem de um Estado doutrinal, haja de ser um Estado agnóstico ou de professar o ateísmo ou o laicismo. O Estado não confessional deve respeitar a liberdade religiosa dos cidadãos. Mas ele só respeita esta liberdade se criar as condições para que os cidadãos crentes possam observar os seus deveres religiosos – permitindo-lhes o exercício do direito de viverem na realidade temporal segundo a própria fé e de regularem as relações sociais de acordo com a sua visão da vida e em conformidade com a escala de valores que para eles resulta da fé professada (cfr. Guiseppe Dalla Torre, La Questione Scolastica nei Rapporti fra Stato e Chiesa, 2ª ed., Bologna, Pàtron Editore, 1989, p. 79) – e as confissões religiosas possam cumprir a sua missão.

Significa isto que a liberdade religiosa, enquanto dimensão da liberdade de consciência (artigo 41º, nº 1, da Constituição), assume também, como já foi referido, um valor positivo, requerendo do Estado não uma pura atitude omissiva, uma abstenção, um non facere, mas um facere, traduzido num dever de assegurar ou propiciar o exercício da religião. Como vincou este Tribunal no seu Acórdão nº 423/87, “… a concepção da liberdade religiosa com um mero conteúdo formal, entendida como esfera de autonomia frente ao Estado e reduzida ao livre jogo da espontaneidade social, parece não satisfazer, por insuficiência, as consciências dos nossos dias. Porque a dimensão real da liberdade, de todas as liberdades e por isso também da liberdade religiosa, depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, a questão deve centrar-se na transformação do conceito de liberdade autonomia em liberdade situação, isto é, no significado positivo de liberdade enquanto poder concreto de realizar determinados fins que constituem o seu objecto, não só pela remoção dos entraves que impedem o seu exercício, como também pela prestação positiva das condições e meios indispensáveis à sua realização [cfr. A. Fernandez – Miranda Campoamor, Estado Laico y Libertad Religiosa, in Revista de Estudios Politicos, 6 (1978), p. 68]”.

7.2. Justamente, um dos domínios em que o Estado deve criar condições para que a liberdade religiosa possa ser exercida é o do ensino público.
Com efeito, não se pode olvidar, por um lado, que é garantido pela Constituição aos pais o direito de educação dos seus filhos (artigo 36º, nº 5), incluindo-se nesse direito a faculdade de os pais escolherem o tipo de educação que mais lhes convenha de entre as diferentes opções que lhes sejam oferecidas, públicas e privadas, fazendo com que os seus filhos recebam o ensino religioso e moral mais conforme com as suas convicções (cfr. Daniel Basterra, El Derecho a la Libertad Religiosa y su Tutela Juridica, Madrid, Civitas, 1989, p. 150,151) – direito este que está contemplado em várias Declarações de direitos (v.g. artigo 26º, nº 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948: “Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos”; artigo 2º do Protocolo Adicional Nº 1, de 20 de Março de 1952, à Convenção Europeia dos Direitos do Homem: “A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar esta educação e este ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas”) -, e, do outro lado, que, na tarefa de educar os filhos, têm os pais o direito de contar com a cooperação do Estado [artigo 67º, nº 2, alínea c), da Lei Fundamental].
Ora, destes dois direitos constitucionalmente reconhecidos há-de resultar que, embora o ensino público deva ser não confessional, ao Estado “incumbe o dever”, não apenas de deixar que as igrejas ministrem o ensino da religião nas escolas públicas, mas também “de proporcionar às diversas confissões religiosas o ensino das respectivas religiões, nas escolas públicas, aos alunos que expressamente manifestarem a vontade de o receber” (cfr.o Acórdão nº 423/87).
A não confessionalidade do ensino público proíbe que o ensino público seja ministrado em obediência a uma determinada orientação religiosa [esse ensino não poderá, também, de resto, ser ministrado de acordo com directrizes filosóficas, que façam do ateísmo, do agnosticismo ou do laicismo profissão de fé (artigo 43º, nº 2, da Constituição)]. E proíbe, bem assim, que as escolas públicas possam funcionar como agentes do ensino religioso, que este seja uma tarefa da própria escola, ou seja, do Estado.

“Os princípios constitucionais serão afrontados – escreveu-se no Acórdão deste Tribunal nº 423/87 – quando o Estado, quebrando a neutralidade que deve guardar nesta matéria, autoriza que as suas escolas ministrem o ensino de uma qualquer religião, outro tanto não sucedendo já quando o mesmo Estado, enquanto dinamizador dos valores e interesses socialmente legítimos que deve garantir e desenvolver, permite que nas escolas públicas esse ensino seja ministrado pelas confissões religiosas”.
Quer isto dizer que o ensino religioso, na escola pública, não pode ser uma tarefa pública, uma tarefa do Estado, da própria escola, há-de ser, antes, da exclusiva responsabilidade da Igreja.
Os princípios constitucionais da separação entre as igrejas e o Estado e da não confessionalidade do ensino público não podem ser entendidos de forma tão rígida que obstaculizem a colaboração do Estado com as igrejas e outras comunidades religiosas. A colaboração do Estado com as igrejas constitui mesmo uma obrigação do Estado (cfr. Luis Vicente Cantín, ob. cit., p. 109 ss.), a qual tem o seu fundamento na liberdade religiosa, na sua dimensão positiva, e no dever do Estado de cooperação com os pais na educação dos filhos e o seu limite nos princípios da laicidade do Estado e da a-confessionalidade do ensino público.

7.3. Importa ainda referir, nestas linhas gerais caracterizadoras das normas e princípios que constituem os parâmetros constitucionais das normas questionadas da Portaria nº 333/86, o princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição). De facto, no desempenho da sua incumbência “de proporcionar às diversas confissões o ensino das respectivas religiões, nas escolas públicas, aos alunos que expressamente manifestarem a vontade de o receber”, está o Estado vinculado à observância do princípio constitucional da igualdade, não podendo estabelecer desigualdades de tratamento arbitrárias, materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional (cfr., por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 186/90, 187/90 e 188/90, publicados no Diário da República, II Série, nº 211, de 12 de Setembro de 1990). Como salientou este Tribunal no seu Acórdão nº 423/87, ” … o Estado não pode deixar neste domínio de conceder acatamento ao princípio da igualdade, não sendo assim constitucionalmente legítimas distinções injustificadas entre igrejas e entre crentes de diversas religiões (estes, aliás, enquanto individualmente considerados, sempre têm de se haver por indissoluvelmente associados às confissões que professam, por via do influxo institucional delas recebido)”.

7.4. Definidos, em termos genéricos, o sentido e o alcance das normas e princípios que, prima facie, podem ser considerados como parâmetros constitucionais das normas da Portaria nº 333/86 impugnadas pelos requerentes, está o Tribunal em condições de adiantar, desde já, que nenhum deles é infringido pelas normas ora postas em crise daquela Portaria.

Vejamos porquê, analisando cada uma das normas da Portaria nº 333/86 objecto do pedido.

7.4.1. A norma do nº 1 da Portaria nº 333/86 determina, em execução do preceituado no Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, que a leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário é da responsabilidade da Igreja Católica, faz parte integrante do currículo do ensino primário, ao mesmo nível das demais disciplinas, e é regulada pelos restantes números da mesma portaria. O sentido daquela norma da Portaria nº 333/86 – a qual tem de ser lida em conjugação com as restantes normas da referida portaria – é o de reafirmar e regulamentar, para o ensino primário, os princípios gerais respeitantes ao ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas públicas, condensados no Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho – os quais foram sancionados pela Lei nº 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), ao dispor, no seu artigo 47º, nº 3, que “os planos curriculares dos ensinos básico e secundário integram ainda o ensino da moral e da religião católica, a título facultativo, no respeito dos princípios constitucionais da separação das igrejas e do Estado e da não confessionalidade do ensino público”.
Ao incluirem no pedido de declaração de inconstitucionalidade dirigido a este Tribunal a norma do nº 1º da Portaria nº 333/86, colocam os requerentes a este Tribunal a questão da legitimidade constitucional do ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, de acordo com os princípios e regras constantes daquela Portaria, os quais, como já se disse, coincidem, no essencial, com os que estão vertidos no Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho.

Ora, a esta questão de constitucionalidade responde o Tribunal Constitucional, nos mesmos termos em que o fez no Acórdão nº 423/87, a propósito das normas do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho. E a resposta é naturalmente a de que a norma do nº 1º da Portaria nº 333/86 não infringe os princípios constitucionais da separação entre as igrejas e o Estado e da não confessionalidade do ensino público, porque a acentuação predominante e verdadeiramente caracterizadora do ensino nela previsto “aponta para a sua natureza não confessional, isto é, trata-se de um ensino ministrado na escola por uma confissão religiosa, e não de um ensino na escola e da escola”. Pode afirmar-se, com efeito, utilizando mais uma vez as palavras do Acórdão nº 423/87, que a Portaria nº 333/86 “não institui um ensino religioso que possa haver-se como tarefa pública, com tarefa do Estado, como função da própria escola. Institui, sim, um ensino religioso ministrado pela Igreja e da sua exclusiva responsabilidade”.
Mas não é apenas por esta razão, de índole negativa, que a norma do nº 1º da Portaria nº 333/86 – e com ela o tipo de ensino religioso previsto neste diploma regulamentar – não viola a Constituição. A ela pode acrescentar-se um outro fundamento de cariz positivo. Com efeito, o Estado não pode fechar os olhos à dimensão social do fenómeno religioso (cfr. Juan Calvo Otero, La Mencion Especifica de la Iglesia Catolica en la Constitucion Española, in E. Garcia de Enterria / L. Sanchez Agesta e outros, El Desarollo de la Constitucion Española de 1978, Zaragoza, Pórtico, 1982, p. 152). Ultrapassada, no nosso país, a fase em que a separação entre o Estado e a Igreja significou um viver de costas voltadas e reconhecida que foi a necessidade de cooperação entre aquelas duas entidades, já que o crente é, simultaneamente, um cidadão, as necessidades religiosas converteram-se num bem jurídico que ao Estado cabe garantir e a liberdade religiosa, em critério básico orientador da acção dos poderes públicos face ao fenómeno religioso.
Neste contexto, há-de incumbir ao Estado o “dever” de proporcionar à Igreja Católica o ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas, nas escolas primárias, aos alunos cujos pais, ou quem as suas vezes fizer, manifestarem expressamente a vontade de o receber. Esse “dever” tem o seu fundamento constitucional, desde logo, no princípio da liberdade religiosa, na sua vertente positiva. Mas é sobretudo na obrigação que sobre o Estado recai de cooperar com os pais na educação dos filhos [artigo 67º, nº 2, alínea c), da Constituição] que aquele “dever” do Estado” – e o correlativo direito dos pais – encontra a sua base de legitimação constitucional.
A conclusão a que vem de chegar-se de não inconstitucionalidade da norma do nº 1º da Portaria nº 333/86 – e com ela do próprio ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas, nas escolas primárias, ensino esse da responsabilidade da Igreja Católica (o que implica que os professores sejam contratados ou nomeados por proposta do serviço diocesano competente e os programas e os manuais sejam da responsabilidade do episcopado e elaborados pelos serviços competentes da Igreja – nºs. 15º, 20º e 21º da Portaria nº 330/86) – é sufragada tanto por quem entenda que o “dever” do Estado de cooperação com os pais na educação dos filhos implica para estes o direito de exigirem que aquele proporcione, nas escolas primárias, à Igreja Católica o ensino, dirigido aos seus filhos, da disciplina de Religião e Moral Católicas, como por aqueles que entendem que num tal “dever” vai tão-só implicada a possibilidade de o Estado criar as condições para que a Igreja Católica ministre, nas mesmas escolas, um tal ensino. E isso quer esse ensino abranja apenas a “Moral” Católica, quer simultaneamente a respectiva Religião, dada a incindibilidade das matérias “Religião” e “Moral” Católicas incluídas na disciplina com o mesmo nome.

7.4.2. A norma do nº 20º, que determina que “o programa da disciplina de Religião e Moral Católicas é da responsabilidade do episcopado, elaborado pelos serviços competentes da Igreja e enviado ao Ministério da Educação e Cultura para oficialização e publicação, sempre que possível, em conjunto com os programas das restantes disciplinas” não fere também qualquer norma ou princípio constitucional.

Certamente que, se o vocábulo “oficialização” constante da norma acabada de transcrever houvesse de ser interpretado como traduzindo a ideia de que o programa da disciplina de Religião e Moral Católicas está sujeito a um juízo de assentimento ou de concordância por parte do Ministério da Educação, em termos de o Estado ficar co-res- ponsabilizado em relação a ele, então aquela norma seria inexoravelmente inconstitucional, já que ela violaria os princípios constitucionais da separação entre as igrejas e o Estado e da não confessionalidade do ensino público. Mas uma tal interpretação não seria adequada, nem estaria em consonância com o sentido geral do diploma – na verdade, a aludida interpretação do termo “oficialização” estaria em contradição com a competência exclusiva do episcopado tanto para a elaboração do programa da disciplina de Religião e Moral Católicas, referida no próprio nº 20º, como para a aprovação dos livros do docente de Religião e Moral e, bem assim, dos manuais e fichas de trabalho para os alunos, consagrada no nº 21º.

Como já foi referido, o vocábulo “oficialização” pode e deve ser interpretado com o sentido de que a divulgação ou publicação pelos serviços do Ministério da Educação do programa da disciplina de Religião e Moral Católicas é feita por uma entidade oficial ou pública (traduzindo, assim, uma realidade idêntica ou muito próxima da da publicação) e, bem assim, com o significado de que o programa daquela disciplina, o qual é aprovado pelas entidades eclesiásticas competentes, passa a ser um programa oficial, no sentido de único.
É, assim, perfeitamente possível interpretar a norma do nº 20º da Portaria nº 333/86 em conformidade com a Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1117,1118), pelo que ela não deve ser declarada inconstitucional por este Tribunal.

7.4.3. De igual modo, a norma da nº 23º da Portaria nº 333/86, nos termos da qual “o apoio pedagógico e a formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas serão facultados pelos serviços do Ministério da Educação e Cultura, em condições idênticas às previstas para as outras disciplinas”, é susceptível de ser interpretada em conformidade ou em harmonia com a Constituição.
A tese da inconstitucionalidade desta norma assenta no pressuposto de que ela determina que a formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas, sejam eles os professores do ensino primário que leccionam a disciplina, sejam os párocos da freguesia ou outras pessoas idóneas (cfr. o nº 14º), é fornecida pelos serviços do Ministério da Educação, sendo a formação da responsabilidade do Estado.
Se este entendimento da norma do nº 23º da Portaria nº 333/86 fosse inevitável, isto é, se houvesse de se chegar à conclusão de que aquela norma prevê um sistema pelo qual o Estado concede formação religiosa aos professores da disciplina de Religião e Moral Católicas, então seria manifesta a sua inconstitucionalidade, na medida em qual ela permitiria que o Estado se imiscuisse numa actividade que constitui domínio reservado da Igreja Católica, violando, flagrantemente, o princípio constitucional da separação entre as igrejas e o Estado.
Mas, como já foi salientado anteriormente, aquela norma consente uma interpretação diversa. Essa interpretação vai no sentido de que a formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas, a que faz referência o nº 23º da Portaria nº 333/86, não é uma formação da responsabilidade directa ou indirecta do Estado, mas uma formação da responsabilidade da Igreja Católica, no sentido de que os formadores são escolhidos ou indicados por esta entidade, pertencendo a orientação das “acções de formação” dirigidas àqueles professores aos Secretariados Diocesanos do Ensino da Igreja nas Escolas, e cabendo aos serviços do Ministério da Educação o fornecimento de “condições logísticas” (designadamente financeiras) que possibilitem aos professores de Religião e Moral Católicas a frequência das “acções de formação” promovidas e orientadas pelas entidades eclesiásticas competentes.
Refira-se que este apoio do Estado, através do fornecimento de “condições logísticas” à formação dos professores da disciplina de Religião e Moral Católicas, justifica-se em nome do princípio da colaboração (cooperação), que, como já foi salientado, não é incompatível com o princípio da separação.

Ora, sendo o sentido que vem de extrair-se perfeitamente compatível com o enunciado linguístico da norma do nº 23º da Portaria nº 333/86, e sendo ele até o mais consentâneo com o espírito geral daquele diploma, tem de concluir-se pela não inconstitucionalidade daquela disposição regulamentar.

7.4.4. O nº 14º da Portaria nº 333/86 estabelece que a disciplina de Religião e Moral Católicas será ministrada ou pelo professor do ensino primário [alínea a)], ou pelo pároco da freguesia ou por outra pessoa idónea [alínea b)]. Em qualquer dos casos, o responsável pela leccionação é proposto pelo serviço diocesano à direcção escolar respectiva (nº 15º da Portaria nº 333/86).
Se o ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas pelo pároco da freguesia ou por outra pessoa idónea – e na qualidade de “pessoa idónea” deve ser visto o professor primário que leccionar a disciplina de Religião e Moral Católicas em escola diferente daquela em que ele é professor ou, tratando-se da escola em que exerce o munus docendi, a alunos diferentes da sua própria turma ou turmas – não suscita problemas específicos de constitucionalidade, já a leccionação daquela disciplina pelo próprio professor da turma, em que este, na veste de professor único (cfr. o artigo 8º, nº 1, alínea a), da Lei de Bases do Sistema Educativo), se apresenta simultaneamente como professor da disciplina de Religião e Moral Católicas e das restantes disciplinas do ensino primário (hoje 1º ciclo do ensino básico), é objecto de algumas dúvidas de constitucionalidade. Esta é, de resto, a principal questão de constitucionalidade que, a propósito da Portaria nº 333/86,foi colocada ao Tribunal.
Com efeito, argumentarão alguns que a acumulação subjectiva de funções, ou o desempenho pela mesma pessoa das funções de professor da disciplina de Religião e Moral Católicas e de professor das restantes disciplinas do 1º ciclo do ensino básico, viola os princípios constitucionais da separação entre as igrejas e o Estado – o qual, na sua dimensão pessoal, proíbe que uma mesma pessoa represente simultaneamente a Igreja e o Estado -, da não confessionalidade do ensino público, já que dela resulta um “ensino religioso difuso”, na medida em que propicia que o ensino das matérias não religiosas ganhe também uma dimensão religiosa, e, bem assim, da liberdade religiosa, uma vez que com ela os pais podem sentir-se coagidos a inscrever os filhos na disciplina de Religião e Moral Católicas, com receio de que o professor, sendo o professor da turma, prejudique os filhos se o não fizerem.
Entende, no entanto, o Tribunal que estas objecções à conformidade com a Constituição da norma do nº 14º da Portaria nº 333/86, na parte em que admite que o professor da disciplina de Religião e Moral Católicas seja o professor da turma, não são procedentes e que aquele norma não infringe nenhum daqueles princípios constitucionais.
É inegável que o facto de ser o mesmo professor a leccionar as disciplinas curriculares e a disciplina de Religião e Moral Católicas, no ensino primário, tem uma certa carga simbólica, que, de um lado, é susceptível, prima facie, de criar a ideia de que o ensino da Religião e Moral Católicas é um ensino do Estado e, do outro lado, pode originar nos pais um certo temor reverencial que os conduza a inscrever os filhos naquela disciplina, mesmo na ausência de sólidas convicções religiosas. É essa carga simbólica que leva a dizer que a dupla representação (representante do Estado, enquanto funcionário e professor das disciplinas curriculares, representante da Igreja perante as mesmas pessoas de que é professor, enquanto encarregado por ela do ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas) viola os princípios da separação entre as igrejas e o Estado (na sua vertente de separação pessoal), da não confessionalidade do ensino público e da liberdade religiosa.

Simplesmente, uma observação mais atenta do sistema da Portaria nº 333/86 leva-nos à conclusão de que o ensino da Religião e Moral Católicas aí regulamentado é um ensino da responsabilidade da Igreja e não do Estado : é aquela que propõe a nomeação dos professores da disciplina de Religião e Moral Católicas, mesmo no caso do professor primário (professor da turma), e aprova os programas e os manuais (nºs. 15º, 20º e 21º). A circunstância de o ensino daquela disciplina ser ministrado pelos próprios professores primários (no sentido de professores da turma) não faz com que ele seja um ensino da escola (do Estado), ou seja, não acarreta a sua transformação em tarefa estadual. Não pode, com efeito, esquecer-se que a leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas apenas é exercida pelos professores da turma que, desejando encarregar-se dessa tarefa, forem para tal propostos pela Igreja. Daqui decorre que o professor primário, enquanto professor da disciplina de Religião e Moral Católicas, não surge como uma emanação do Estado, mas antes como uma emanação da Igreja, já que é gerado na comunidade de crentes.
A isto deve aditar-se que o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, desde que despido de uma carga rigorista, não proíbe necessariamente a dupla repre- sentação. Se proibisse, então, o sacerdote, ministro da Igreja, não poderia oficiar um casamento (católico), a que a lei reconhece efeitos civis – e pode, já que é a própria Constituição (artigo 36º, nº 2) a admitir, com efeitos civis, essa forma de celebração, apenas reservando para a lei a fixação dos respectivos requisitos e efeitos. Mas, assim sendo, então tem de concluir-se que o aludido princípio da separação não é incompatível com a dupla representação. Pode, por isso, afirmar-se que a dupla representação do professor da turma, no ensino primário, enquanto representante do Estado, quando lecciona as disciplinas curriculares, e enquanto representante da Igreja Católica, quando exerce funções docentes da disciplina de Religião e Moral Católicas, ainda é conciliável com o princípio constitucional da separação entre as igrejas e o Estado.
A norma do nº 14º da Portaria nº 333/86, na parte assinalada, não viola também o princípio da não confessionalidade do ensino público. A circunstância de o professor da turma, no ensino primário, leccionar também a disciplina de Religião e Moral Católicas não conduz inevitavelmente a que ele vá incutir no ensino das outras disciplinas uma concepção do homem, do mundo e da vida inspirada nos princípios da fé cristã. E, se uma situação destas acontecer na realidade, isso não será imputável directamente àquele sistema, mas algo que tem a ver com a personalidade do professor. Ao que acresce que o “perigo” de o professor da turma impregnar o ensino das outras disciplinas com a sua “mundividência” existe também nas hipóteses em que ele, sendo católico, não é professor da disciplina de Religião e Moral Católicas – tal como existe também na hipótese contrária de o professor ser um ateu convicto ou um anticlerical -, desde que não exerça o seu munus docendi de acordo com as regras da imparcialidade e da neutralidade.
A norma de que se vem falando também não colide com o princípio constitucional da liberdade religiosa. É certo que os pais podem sentir-se “coagidos” a inscrever os filhos na disciplina de Religião e Moral Católicas com o receio de que o professor, sendo o professor da turma, prejudique os filhos se o não fizerem. Mas esse é um risco em tudo igual ao daquele que existe quando o professor é um ateu militante. Também neste caso os pais podem recear inscrever os seus filhos na disciplina de Religião e Moral Católicas.
No entanto, em qualquer destes casos, trata-se apenas do risco que sempre vai implicado no exercício da liberdade religiosa, que é, ela própria, um grito de rebeldia (e de libertação) contra a omnipotência do Estado e uma afirmação da soberania da pessoa sobre a soberania do Estado. Sendo assim, terá, pois, de concluir-se que aquele “risco” de temor reverencial não atinge o núcleo essencial da liberdade religiosa.

7.4.5. As considerações que foram tecidas a propósito da norma do nº 14º da Portaria nº 333/86 são suficientes para legitimar a conclusão da não inconstitucionalidade da norma do nº 2º daquele diploma regulamentar. Com efeito, a hipótese desta norma refere-se à situação de o professor da turma assumir a docência da disciplina de Religião e Moral Católicas – situação à volta da qual foi construído o quinhão principal da argumentação desenvolvida no ponto anterior. Já quanto à estatuição daquela norma – a de que, no caso aludido, aquela disciplina será ministrada, durante a semana, no tempo lectivo mais adequado sob o ponto de vista da articulação pedagógica da planificação escolar -, não se vê como uma norma de carácter organizatório como esta – que surge como uma consequência do princípio da integração da disciplina de Religião e Moral Católicas no currículo escolar do ensino primário e que visa impedir que da sua leccionação resultem prejuízos ou incómodos para os alunos nela não inscritos -, uma vez resolvida como está a questão fundamental da legitimidade constitucional do ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, ao mesmo nível das demais disciplinas, possa brigar com algum dos princípios constitucionais acima referidos.

7.4.6. A hipótese da norma do nº 11º da Portaria nº 333/86 é igualmente a de a regência da disciplina de Religião e Moral Católicas pertencer ao professor da turma. Quando ocorrer uma situação destas, preceitua aquela norma que os alunos que não frequentarem aquela disciplina deverão, enquanto decorrer a aula, ou ser distribuídos, em grupo, por outras turmas, a fim de serem ocupados em actividades escolares [alínea a)], ou, no caso de não ser possível esta solução, ser ocupados pelos pais, encarregados de educação ou outros elementos da comunidade [alínea b)].

Tendo em conta que o problema da compatibilidade com a Constituição da primeira parte da norma do nº 11º – precisamente a que tem a ver com a sua hipótese – já foi analisada nas linhas antecedentes, importa agora apenas considerar a segunda parte da mesma – a que regula os modos de ocupação dos alunos que não frequentem as aulas da disciplina de Religião e Moral Católicas, quando a regência desta couber ao professor da turma. Também ela, pode já afirmar-se, não infringe nenhum dos princípios constitucionais acima mencionados.
Poderá começar-se por colocar a questão de saber se a norma do nº 11º da Portaria nº 333/86, na parte que agora interessa, não terá sido revogada pelos nºs 4 a 7 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto – diploma que, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela alínea e) do artigo 59º da Lei de Bases do Sistema Educativo, estabelece os princípios gerais da reestruturação curricular dos ensinos básicos e secundário. De facto, o nº 4 do artigo 7º daquele diploma legal determina que, nos ensinos básico e secundário, funcionam, em alternativa, as disciplinas de Desenvolvimento Pessoal e Social e de Educação Moral e Religiosa Católica ou de outras confissões, estatuindo o nº 5 do mesma disposição que é obrigatória a frequência de uma delas. De acordo com estes preceitos legais, poderá entender-se que os alunos não inscritos, no 1º ciclo do ensino básico, na disciplina de Religião e Moral Católicas não serão ocupados, enquanto decorrer a aula, nos termos do nº 11º da Portaria nº 333/86, antes frequentarão obrigatoriamente a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social.
Seja como for, determinando o nº 7 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 286/89 que “a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social será proporcionada pelas escolas à medida que o sistema dispuser de docentes para tal habilitados” e sendo seguro que nem todas as escolas primárias dispõem de docentes aptos para a leccionação daquela disciplina alternativa, deve concluir-se que a norma do nº 11º da Portaria 333/86 ainda vem sendo aplicada, pelo menos em parte das escolas primárias. Há, pois, que analisar a questão da sua legitimidade constitucional.

A Corte Costituzionale italiana vem defendendo, em jurisprudência recente, que dos princípios constitucionais da liberdade de consciência e da liberdade religiosa resulta que, para os alunos que decidem não frequentar o ensino da Religião Católica, a única alternativa real e consequente consiste em reconhecer aos mesmos, em toda a sua extensão, uma situação de não obrigação (“uno stato di non obbligo”). De um tal reconhecimento, deve extrair-se a consequência de que as denominadas “actividades alternativas”, tais como o estudo individual ou a frequência das aulas de uma disciplina alternativa, não podem ser consideradas obrigatórias para os alunos, assistindo a estes o direito de não permanecer na escola, enquanto decorrer as aulas da disciplina de Religião e Moral Católica [cfr. as Sentenças da Corte Costituzionale nºs 203, de 12 de Abril de 1989, in Il Foro Italiano, 1989, I, p. 1333 ss., e 13, de 14 de Janeiro de 1991, in Giurisprudenza Costituzionale, Anno XXXVI (1), 1991, p. 77 ss.; cfr. também Nicola Pagano, Religione e Libertà nelle Scuole, Torino, Claudiana, 1990,p. 185-189, e Paolo Picozza, Sulla “Facoltatività” dell’ Insegnamento della Religione Cattolica nelle Scuole Pubbliche: Consequenze Derivanti da Tale Principio, in Giurisprudenza Costituzionale, Anno XXXV (4), 1990, p. 1266-1271].
Uma transposição de plano desta orientação jurisprudencial para o caso sub judicio teria como efeito a inconstitucionalização da norma do nº 11º da Portaria nº 333/86, se não em toda a sua extensão, pelo menos quanto à sua alínea a), pois os alunos que não frequentarem a disciplina de Religião e Moral Católicas serão, enquanto decorrer a aula,obriga- toriamente ocupados em actividades escolares dentro da escola, não lhes sendo reconhecido o direito de abandonar o estabelecimento de ensino.
Mas uma tal transposição acrítica revelar-se–ia, no caso em apreço, inadequada. A solução adoptada pela jurisprudência constitucional transalpina não pode ser aplicada a alunos do 1º ciclo do ensino básico, quase todos crianças de tenra idade, que não têm ainda a maturidade suficiente para poderem usufruir do referido “stato di non obbligo”. Por isso, em relação aos alunos do ensino primário, são constitucionalmente legítimas as normas que estabeleçam formas obrigatórias de ocupação dos alunos que não frequentarem a disciplina de Religião e Moral Católicas, enquanto decorrerem as aulas desta, no caso de a sua regência caber ao professor da turma.
Poderá mesmo dizer-se que a previsão e a organização de “actividades alternativas” para os alunos do ensino primário que não frequentem a disciplina de Religião e Moral Católicas, enquanto decorrerem as aulas, e no caso de a sua regência caber ao professor da turma, constitui um requisito indispensável de garantia da liberdade religiosa, impedindo que o exercício deste direito fundamental seja condicionado por elementos exteriores à consciência individual.
Na verdade, a falta ou a deficiente organização de “actividades alternativas” para os alunos que não frequentem as aulas de Religião e Moral Católicas poderia até representar um elemento objectivo capaz de influir na decisão dos pais de inscrever ou não os seus filhos naquela disciplina, evitando que estes, no período em que decorrem aquelas aulas, fiquem abandonados ou entregues a si mesmos.
Eis, pois, como a norma do nº 11º da Portaria nº 333/86 não é inconstitucional.

7.4.7. As normas da Portaria nº 333/86 que constituem o objecto do presente processo também não podem ser declaradas inconstitucionais, por violação do princípio constitucional da igualdade, condensado no artigo 13º da Constituição. É certo que aquela portaria apenas regula a leccionação, no ensino primário, da disciplina de Religião e Moral Católicas, deixando de fora o ensino da religião de confissões não católicas.
A isto ajunte-se que a ministração, em regime de frequência facultativa, nas escolas públicas, de aulas de formação religiosa das diversas confissões religiosas que, para além da Igreja Católica, se encontram implantadas em Portugal apenas está regulamentada, no nosso país, nos 2º e 3º ciclos do ensino básico e no ensino secundário, excluindo-se, assim, o 1º ciclo do ensino básico ou ensino primário (cfr. o Despacho Normativo nº 104/89, de 7 de Setembro, Diário da República, I Série, nº 264, de 16 de Novembro de 1989), apesar de os nºs 4 e 5 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto, garantirem genericamente o ensino religioso de todas as confissões nas escolas públicas, nos ensinos básico e secundário, consagrando, assim, um pluralismo de ensino religioso nas escolas públicas. Mas, como vincou este Tribunal no seu Acórdão nº 423/87, “esta circunstância, de que ressalta com nitidez o tratamento diversificado de que desfruta a Igreja Católica, fruto da realidade histórica e sociológica em que esta se inscreve, não é susceptível de conduzir, atenta esta realidade, a uma declaração de inconstitucionalidade de qualquer das normas questionadas por violação do disposto no artigo 13º da Constituição”, na medida em que o Estado, ao editar a Portaria nº 333/86, “apenas deu cumprimento a um dever que sobre ele impende”.
Simplesmente, dir-se-á, seguindo uma vez mais aquele aresto do Tribunal Constitucional, “que o Estado não pode abster-se de, no tocante às demais confissões, lhes conceder um tratamento afim, tendo em conta, é certo, as circunstâncias próprias de cada uma delas (dimensão quantitativa, espaço geográfico ocupado, disseminação entre a população escolar, etc.), sob pena de não respeitar o princípio da igualdade e, por via omissiva, violar o texto constitucional”.
A propósito desta temática, Jorge Miranda [cfr. Liberdade Religiosa em Portugal, in Nação e Defesa, Ano XI (39), 1986, p. 134,135] salienta que diversos diplomas do nosso ordenamento jurídico (entre os quais se incluem os respeitantes ao ensino religioso nas escolas públicas) “se circunscrevem à religião católica e, assim, deixam as demais confissões em situação de facto que, por vezes, se torna de desfavor. Nessa medida revelam-se criticáveis. A crítica a fazer não é, contudo, por preverem assistência e ensino religioso – porque o silêncio ou a neutralidade negativa perante a religião na prática redunda em posição contra a religião; a crítica é por não organizarem também, em colaboração com as confissões não católicas e na medida das suas possibilidades, assistência e ensino das respectivas religiões.
Aquelas leis não são, pois, inconstitucionais por acção. São, ou podem ser, inconstitucionais por omissão – e, como tais, podem ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional (art. 283º da Constituição) para efeito de ele comunicar aos órgãos legislativos a necessidade constitucional de complementação e adequação”.
Todavia, ainda que se entenda que a ausência de medidas regulamentadoras do ensino religioso não católico nas escolas primárias origina uma inconstitucionalidade por omissão, o certo é que, encontrando-se esta disciplinada em termos próprios e autónomos no texto constitucional, não pode esta matéria inscrever-se no âmbito da cognição do presente processo (cfr. o citado Acórdão nº 423/87).

8. A alegada inconstitucionalidade orgânica das normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro

A Portaria nº 831/87, invocando o disposto no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, e tendo em atenção o estabelecido no Capítulo III do Decreto-Lei nº 316/83, de 2 de Julho, prescreve o seguinte:


Curso de educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico
As escolas superiores de educação e os centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico darão àqueles futuros docentes que o pretendam a formação adequada para poderem vir a assumir a educação moral e religiosa dos seus alunos, tendo em vista assegurar os direitos consignados no nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho.


Expressão curricular
Para efeitos do estabelecido no número anterior, os planos de estudo destinados à formação de educadores de infância e de professores do 1º ciclo do ensino básico incluirão uma disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica, adiante designada no presente diploma por disciplina e que, para todos os efeitos legais, faz parte dos respectivos curricula como disciplina optativa dos mesmos.


Integração na prática pedagógica

A expressão curricular da disciplina referida no número anterior assegurará a adequada integração da área de Religião e Moral Católica na prática pedagógica.

Programa da disciplina
1 – A elaboração do programa da disciplina, bem como das suas alterações, é da competência da Conferência Episcopal Portuguesa, através da Comissão Episcopal da Educação Cristã, que os enviarão ao Ministério da Educação.

2 – O presidente da Comissão Episcopal da Educação Cristã comunicará anualmente, até 28 de Fevereiro, à Direcção-Geral do Ensino Superior as alterações que pretenda introduzir ao programa.

3 – A Direcção-Geral do Ensino Superior comunicará as referidas alterações, até 15 de Março, às instituições de ensino superior que ministrem os cursos a que se refere o nº 1.

Carga horária e inserção na
estrutura curricular
1 – Compete ao conselho científico de cada instituição de ensino superior, face ao programa aprovado e comunicado nos termos do nº 4º, fixar a carga horária global e semanal da disciplina e a sua inserção na estrutura curricular dos cursos, tendo em atenção o parecer da Comissão Episcopal da Educação Cristã.
2 – A deliberação a que se refere o nº 1 está sujeita a homologação do reitor da universidade ou do presidente da comissão instaladora do instituto politécnico (ou, na sua falta, do presidente da comissão instaladora da escola superior de educação), conforme os casos, e será objecto de publicação no Diário da República, 2ª série.


Regras pedagógicas e administrativas
aplicáveis à disciplina
A disciplina está sujeita a todas as regras de natureza pedagógica e administrativa aplicáveis às restantes disciplinas do plano de estudos do curso.


Docentes
Aos docentes da disciplina aplicar-se-ão integralmente as regras do Estatuto da Carreira Docente legalmente vigente para a instituição de ensino superior em causa, acrescidas da obrigatoriedade de obtenção de anuência prévia para a contratação por parte do bispo da diocese.


Regimes de associação
Para efeitos do disposto na presente portaria, as instituições formadoras poderão estabelecer, em todos os casos, regimes de associação com outros estabelecimentos de ensino superior, nomeadamente universitário, os quais obedecerão às normas gerais em vigor.


Leccionação da disciplina
Os educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico com aproveitamento na disciplina consideram-se aptos a assumirem a responsabilidade da educação moral e religiosa dos seus alunos, designadamente nas condições definidas na Portaria nº 333/86, de 2 de Julho.

10º
Aplicação
O disposto na presente portaria aplica-se a partir do ano lectivo de 1987-1988, inclusive.

11º
Primeira comunicação do programa
1 – A primeira comunicação do programa da disciplina será feita pelo presidente da Comissão Episcopal da Educação Cristã à Direcção-Geral do Ensino Superior até 30 dias após a publicação da presente portaria.

2 – A Direcção-Geral do Ensino Superior comunicará o programa a todas as instituições a que se refere o nº 1º da presente portaria até quinze dias após a recepção do mesmo.

12º
Medidas transitórias
As instituições de ensino superior que em 1986-1987 já ministraram os cursos a que se refere o nº 1º tomarão as medidas necessárias para assegurar que os actuais alunos, bem como aqueles que reingressem, mudem para estes cursos ou se transfiram, sejam abrangidos a partir de 1987-1988 pelo disposto na presente portaria.

Sustentam os requerentes que a portaria acabada de transcrever veio instituir inovatoriamente o ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas em escolas do ensino superior oficial – nas escolas superiores de educação e centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico -, o qual não se encontra previsto na Concordata, nem no Decreto-Lei nº 323/83. E logo acrescentam que aquele diploma regulamentar é organicamente inconstitucional, por dispor de modo inovatório em matéria regulada pela Lei nº 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), que apenas prevê o ensino religioso nas escolas dos ensinos básico e secundário (artigo 47º, nº 3), invadindo, assim, a esfera de competência legislativa reservada da Assembleia da República [artigo 167º, alínea e) – hoje, artigo 167º, alínea i), da Constituição].

Embora, como se disse acima, seja questionada, neste processo, a constitucionalidade de todas as normas da Portaria nº 831/87, é possível encontrar neste diploma algumas normas-chave, pelo que a elas se vai cingir a argumentação a desenvolver pelo Tribunal. São as seguintes: o nº 1º, que se refere ao ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas superiores de educação e nos centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, ensino esse dirigido aos alunos que o pretendam; o nº 2º, que prevê a inclusão nos planos de estudo destinados à formação de educadores de infância e de professores do 1º ciclo do ensino básico da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica, a qual faz parte dos respectivos curricula como disciplina optativa dos mesmos; o nº 4º, que estatui sobre o programa daquela disciplina, estabelecendo que a elaboração deste, bem como das suas alterações, é da competência da Conferência Episcopal Portuguesa, através da Comissão Episcopal da Educação Cristã, que os enviarão ao Ministério da Educação; o nº 7º, que determina que aos docentes da referida disciplina aplicar-se-ão integralmente as regras do Estatuto da Carreira Docente legalmente vigente para a instituição de ensino superior em causa, acrescidas da obrigatoriedade de obtenção de anuência prévia para a contratação por parte do bispo da diocese; e, finalmente, o nº 9º, que prescreve que os educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico com aproveitamento na disciplina consideram-se aptos a assumirem a responsabilidade da educação moral e religiosa dos seus alunos, designadamente nas condições definidas na Portaria nº 333/86, de 2 de Julho.

Acaso serão estas normas organicamente inconstitucionais, como defendem os requerentes?

O Tribunal adianta, desde já, que não.

8.1. A Portaria nº 831/87 indica, no seu preâmbulo, como fundamento “a necessidade de dar execução ao estabelecido no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho”. O conteúdo deste é o seguinte: “o ensino da Religião e Moral Católicas será igualmente assegurado, com a índole apropriada, nos termos do presente diploma, nas actuais escolas do magistério e nas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico, com o carácter de disciplina facultativa dirigida à natureza das respectivas funções”.
Uma vez que este normativo abrange, tal como as restantes disposições do Decreto-Lei nº 323/83, “uma temática com incidência no âmbito dos direitos liberdades e garantias, onde se inscrevem a liberdade de religião e a liberdade de aprender e ensinar, e com incidência também no sistema de ensino”, a não inconstitucionalidade orgânica das normas daquela portaria está dependente da sua natureza meramente secundária ou executiva em relação à norma do artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83.

Todavia, antes de se comprovar o nexo funcional ou de derivação lógica das normas da Portaria nº 831/87 em relação ao mencionado artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, há que tratar previamente a questão de saber se esta disposição legal não terá sido revogada pelo artigo 47º, nº 3, da Lei de Bases do Sistema Educativo. Com efeito, dispondo este preceito da Lei nº 46/86, de 14 de Outubro, que “os planos curriculares dos ensinos básico e secundário integram ainda o ensino da moral e da religião católica, a título facultativo, no respeito dos princípios constitucionais da separação das igrejas e do Estado e da não confessionalidade do ensino público”, poderá entender-se que, actualmente, o ensino da Religião e Moral Católicas circunscreve-se aos ensinos básico e secundário, com exclusão das escolas mencionadas no citado artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83. A ser assim, as normas da Portaria nº 831/87, em especial a do nº 1º, seriam organicamente inconstitucionais, por versarem matéria de competência reservada da Assembleia da República.
Não é esse, porém, o sentido correcto da norma do nº 3 do artigo 47º da Lei de Bases do Sistema Educativo. Esta norma apenas estabelece a obrigação de os planos curriculares dos ensinos básico e secundário incluirem o ensino da Religião e Moral Católicas, não impedindo o ensino destas matérias em outros graus de ensino, designadamente em certos cursos integrados no ensino superior.

O artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 é uma norma especial em relação à Lei de Bases do Sistema Educativo, que indica quais as escolas públicas – para além das primárias, preparatórias e secundárias – onde pode ser ministrado o ensino de Religião e Moral Católicas, pelo que não foi revogado por aquela lei. Ele continua em vigor e constitui a base habilitativa da Portaria nº 831/87. As normas da Portaria nº 831/87 não são, pois, por esta razão, organicamente inconstitucionais.

8.2. A norma do nº 2º da Portaria nº 831/87, apesar de impor que dos planos de estudo das escolas superiores de educação e dos centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico faça parte, na condição de optativa, a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica, não viola o nº 6 do artigo 47º da Lei de Bases do Sistema Educativo, o qual determina que “os planos curriculares do ensino superior respeitam a cada uma das instituições de ensino que ministram os respectivos cursos estabelecidos, ou a estabelecer, de acordo com as necessidades nacionais e regionais e com uma perspectiva de planeamento da respectiva rede”, sendo, por isso, aprovados pelos órgãos competentes de cada instituição de ensino superior (cfr., quanto às universidades, o artigo 7º, nº 2, da Lei nº 108/88, de 24 de Setembro e, quanto às escolas superiores, os artigos 2º, nº 4, e 36º, nº 2, da Lei nº 54/90, de 5 de Setembro). E não viola esta disposição da Lei de Bases do Sistema Educativo, desde logo porque a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e sua Didáctica é concebida como uma disciplina especial no contexto das restantes disciplinas que compõem os planos de estudo das escolas superiores de educação e dos centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, uma disciplina optativa, da responsabilidade da Igreja Católica e não da responsabilidade da instituição de ensino superior, não tendo, por isso, a sua inclusão nos curricula daqueles cursos que ser aprovada pelos órgãos competentes de cada instituição de ensino superior.
Assim sendo, a norma do nº 2 da Portaria nº831/87 não infringe o nº 6 do artigo 47º da Lei nº 46/86,de 14 de Outubro, pelo que, não inovando em matéria constitucionalmente reservada à competência legislativa da Assembleia da República, também não é, por este fundamento, organicamente inconstitucional.

8.3. No requerimento iniciador do presente processo invoca-se ainda, como fundamento da inconstitucionalidade orgânica das normas da Portaria nº 831/87, a violação do artigo XXI da Concordata, o qual – diz-se – não prevê o ensino da Religião e Moral Católicas nos estabelecimentos de ensino indicados no nº 1º daquela portaria .
Entende, porém, o Tribunal que não assiste, também neste ponto, razão aos requerentes. Na verdade, estatuindo o artigo XXI da Concordata que o ensino da Religião e Moral Católicas tem lugar nas escolas públicas elementares, complementares e médias, é perfeitamente legítimo interpretar esta disposição como permitindo o ensino daquela disciplina em todas as escolas que, na data da sua entrada em vigor, não estavam ainda inseridas no ensino superior, tal como sucedia com as escolas que formavam educadores de infância e professores primários. Pode, por conseguinte, afirmar-se que aquele preceito concordatário autoriza o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas referidas no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 e no nº 1º da Portaria nº 831/87,já que não é de admitir que a simples mudança de grau das escolas de formação de educadores de infância e de professores primários tenha a virtualidade de alterar o alcance daquele artigo XXI da Concordata.
Assim sendo, isto é, não indo a norma do nº 1º da Portaria nº 831/87 além do disposto no artigo XXI daquela Convenção, não inova ela em matéria constitucionalmente reservada à competência legislativa da Assembleia da República, pelo que, também por este lado, não enferma a mesma de qualquer vício de inconstitucionalidade orgânica.

8.4. Como já foi salientado, a Portaria nº 831/87 é um diploma regulamentar da norma contida no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83. Tendo em conta que a matéria regulada nesta disposição legal – uma matéria que se conexiona com a liberdade religiosa, a liberdade de ensino e o sistema de ensino – se integra na “reserva do parlamento”, deve a Portaria nº 831/87 respeitar a disciplina jurídica aí desenhada, sob pena de padecer de inconstitucionalidade orgânica, isto é, deve assumir a natureza de um regulamento de execução. Ora, é isso o que se sucede, como de seguida se verá.
O artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 preceitua que o ensino da Religião e Moral Católicas é ministrado nas escolas do magistério primário e nas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico (o qual abrangia, nos termos das Bases IV, nº 4, VII, nº 2, e VIII, nº 2, da Lei nº 5/73, de 25 de Julho, os ensinos primário, com a duração de quatro anos, e preparatório, também com a duração de quatro anos). As escolas do magistério primário tinham como função formar professores do ensino primário, cabendo às escolas de educadores de infância preparar os educadores de infância, os quais integravam os quadros da educação pré-escolar (Base XX, nº 1, da Lei nº 5/73). Por sua vez, os professores do ensino preparatório obtinham a sua formação nas Escolas Normais Superiores (Bases XX, nº 4, e XXII da Lei nº 5/73), as quais faziam parte do ensino superior (Bases XIII, nº 3, XV, nº 2, XVI, nº 1, e XVII da Lei nº 5/73). O artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 permitia, assim, o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas do magistério primário, nas escolas de educadores de infância e nas Escolas Normais Superiores.
As escolas do magistério primário e as destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros de educação pré-escolar e do ensino básico foram, porém, sendo gradualmente extintas face à progressiva entrada em funcionamento dos centros integrados de formação de professores e das escolas superiores de educação (cfr. os Decretos-Leis nºs. 59/86, de 21 de Março, e 101/86, de 17 de Maio, e a Portaria nº 352/86, de 8 de Julho). Por sua vez, o artigo 31º, alíneas a) e b), da Lei nº 46/86, de 14 de Outubro, determinou que a formação dos educadores de infância e dos professores do 1º e 2º ciclos do ensino básico [o 1º ciclo do ensino básico corresponde ao ensino primário, de quatro anos, previsto no nº 2 da Base XII da Lei nº 5/73, e o 2º ciclo do ensino básico compreende os dois anos subsequentes – cfr. o artigo 8º, nº 1, alíneas a) e b), da Lei nº 46/86] tem lugar em escolas superiores de educação, podendo ainda ser realizada em universidades, as quais, para o efeito, atribuem os mesmos diplomas que os das escolas superiores de educação.

Perante esta nova realidade normativa, a Portaria nº 831/87 não se refere às escolas do magistério primário e às escolas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico, as quais já não existiam à data da sua publicação, antes alude às instituições de ensino que vieram herdar as suas atribuições. Mas, ao proceder deste modo, aquela Portaria não introduziu qualquer inovação substancial, apenas veio actualizar a terminologia utilizada no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83.
Com esta actualização, a Portaria nº 831/87 não alargou o elenco dos cursos previstos no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, nos quais tem lugar a leccionação da Religião e Moral Católicas: esses cursos mantêm-se essencialmente os mesmos – são os destinados à preparação e formação de educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico -, constatando-se até que o nº 1º da Portaria nº 831/87 não utilizou, em toda a extensão, a habilitação contida na citada disposição legal quanto ao ensino básico, o qual, como já foi salientado, englobava, no âmbito da vigência da Lei nº 5/73, os ensinos primário e preparatório, cuja duração global era de oito anos.

Sendo as instituições referidas no nº 1º da Portaria nº 831/87 as sucessoras das escolas do magistério primário e das escolas de educadores de infância a que alude o artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, verifica-se uma coincidência entre aqueles dois preceitos quanto aos estabelecimentos de ensino nos quais é leccionada a disciplina da Religião e Moral Católicas. É este o argumento decisivo que leva o Tribunal a considerar que a norma do nº 1º da Portaria nº 831/87 não contém qualquer inovação ou alteração estrutural em relação ao preceituado no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83. É certo que as escolas do magistério primário e as escolas de educadores de infância não faziam parte do ensino superior, na data da entrada em vigor daquele diploma legal, ao passo que as escolas superiores de educação e os centros integrados das formações de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico integram actualmente o ensino superior (cfr. os artigos 11º, nº 1, e 14º da Lei nº 46/86). Mas esta valorização por que passaram as escolas de formação de educadores de infância e de professores do 1º ciclo do ensino básico, através do seu enquadramento no ensino superior – verificada, como se viu, no lapso temporal que decorreu entre a data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 323/83 e a da elaboração da Portaria nº 831/87 – não põe, de modo algum, em causa a concordância das normas do nº 1º da Portaria nº 831/87 e do artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 no respeitante às instituições nas quais é ministrado o ensino da Religião e Moral Católicas.
O artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 refere ainda que a disciplina da Religião e Moral Católicas nas escolas nele mencionadas assume o carácter de disciplina facultativa. Ora, a natureza optativa daquela disciplina é bem vincada pelas normas dos nºs. 1º e 2º da Portaria nº 831/87.

Há, assim, que concluir que as normas da Portaria nº 831/87, em especial a do seu nº 1º, não contêm qualquer normação inovatória, de carácter interpretativo ou integrativo, em relação à matéria de reserva de lei vertida no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, pelo que não violam os artigos 115º, nº 5, 167º, alínea e) (na versão de 1982), e 168º, nº 1, alínea b), da Constituição.

9. A invocada inconstitucionalidade material das normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro

Na óptica dos requerentes, as normas da Portaria nº 831/87 são materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da separação entre as igrejas e o Estado, dado que, instituindo o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas superiores de educação e nos centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, articulam-se, como decorre expressamente das normas dos nºs. 1º e 9º, com o regime constante da Portaria nº 333/86, que prevê que a disciplina da Religião e Moral Católicas, no ensino primário, pode ser assumida pelos próprios professores da escola. Na perspectiva daqueles, o princípio da separação é particularmente infringido pela norma do nº 7º, nos termos da qual aos docentes da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica aplicam-se as regras do Estatuto da Carreira Docente legalmente vigente para a instituição de ensino superior em causa, sendo, assim, contratados pelo Estado, embora esta contratação seja obrigatoriamente precedida da obtenção de anuência prévia por parte do bispo da diocese.
Segundo os autores do pedido, as normas daquele diploma governamental configuram um ensino da Religião e Moral Católicas da responsabilidade do Estado, com a finalidade de formar os futuros docentes do ensino pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico que pretendam assumir a educação moral e religiosa dos seus alunos.
Infringirão as normas da Portaria nº 831/87 os princípios da separação entre as igrejas e o Estado e da não confessionalidade do ensino público, como sustenta o grupo de Deputados requerente?
A resposta a este quesito é também negativa.
A Portaria nº 831/87 apresenta-se, em boa parte, como um diploma instrumental da Portaria nº 333/86, na medida em que prevê, nos cursos destinados à formação dos professores do 1º ciclo do ensino básico, o ensino da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e sua Didáctica, de modo a que os futuros docentes daquele grau de ensino se sintam habilitados a leccionar, se assim o pretenderem e se para tal vierem a ser propostos pelo serviço diocesano competente, a disciplina de Religião e Moral Católicas aos seus alunos.

A Portaria nº 831/87 conexiona-se estreitamente com o sistema da Portaria nº 333/86, mormente com a parte em que esta permite que a regência da disciplina de Religião e Moral Católicas, no ensino primário, seja da responsabilidade do professor da turma.
Significa isto que as considerações acima expostas sobre a não violação dos princípios constitucionais da separação entre as igrejas e o Estado e da não confessionalidade do ensino público por parte das normas da Portaria nº 333/86 podem ser transferidas, mutatis mutandis, para o caso das normas da Portaria nº 831/87. E o mesmo se diga a propósito da não contradição com os princípios constitucionais da liberdade religiosa e da igualdade.
O princípio da separação não exclui, como se realçou anteriormente, toda e qualquer colaboração do Estado com a Igreja Católica. A colaboração com a finalidade de assegurar a liberdade religiosa, propiciando que nas escolas superiores de educação e nos centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico seja ensinada a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica aos alunos que o quiserem, é constitucionalmente legítima, desde que, claro está, não seja o Estado a assumir, ele próprio, a tarefa e a responsabilidade do ensino.

Ora, no sistema da Portaria nº 831/87, o ensino da Religião e Moral Católicas não surge como tarefa do Estado, mas sim como missão da Igreja Católica. Isto resulta claramente da circunstância de a elaboração do programa da disciplina de Educação Moral Religiosa Católica e Sua Didáctica ser da responsabilidade da conferência Episcopal Portuguesa (nº 4º) e de a contratação dos docentes daquela disciplina carecer de anuência prévia do bispo da diocese (nº 7º) e, bem assim, do facto de a aprovação na referida disciplina não dispensar – contrariamente ao que poderia resultar de uma interpretação meramente literal da norma do nº 9º – uma proposta caso a caso por parte do serviço diocesano competente à direcção escolar, nos termos do nº 15º da Portaria nº 333/86, para que o professor do 1º ciclo do ensino básico possa assumir a responsabilidade da educação moral e religiosa católicas dos seus alunos.
Da responsabilidade do Estado, por intermédio das instituições de ensino superior referidas no nº 1º da Portaria nº 831/87, são apenas o pagamento das remunerações aos docentes – pagamento este que, como se referiu no Acórdão deste Tribunal nº 423/87, pressupõe necessariamente a contratação dos docentes por parte do Estado, embora este acto formal de provimento em que se traduz o contrato perca todo o significado em face da necessidade de anuência por parte do bispo da diocese – e a definição de alguns elementos organizatórios, como os referidos nas normas dos nºs 5º, 6º e 8º, aspectos estes que ainda se contêm nos limites de tolerância do princípio da separação ou da laicidade.
Importa, por fim, assinalar que o fundamento constitucional das normas da Portaria nº 831/87, em especial das normas dos seus nºs. 1º e 2º, pode ainda ir buscar-se ao artigo 67º, nº 2, alínea e), da Lei Fundamental, que estabelece o “dever” do Estado de cooperar com os pais na educação dos filhos. Na verdade, a inclusão da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica, com o carácter de disciplina optativa, nos planos de estudo das escolas superiores de educação e dos centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, pode ser considerada, numa certa perspectiva, como um expediente necessário para tomar efectivo o ensino da Religião e Moral Católicas, no ensino pré-escolar e no 1º ciclo do ensino básico, a cargo da Igreja Católica, e cujo alicerce constitucional, como acima foi salientado, assenta directamente no direito que assiste aos pais de exigirem a cooperação do Estado na educação religiosa dos seus filhos [cfr., a este propósito, a Sentença do Tribunal Constitucional Espanhol nº 187/1991, in Boletin de Jurisprudencia Constitucional, 127 (1991), p. 42 ss.].
Deve, assim, concluir-se que as normas da Portaria nº 831/87 não são materialmente inconstitucionais.

III – Decisão.

10. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não declarar a inconstitucionalidade das normas dos nºs 1º, 2º, 11º, 14º, 20º, e 23º da Portaria nº 333/86, de 2 de Julho;

b) Não declarar a inconstitucionalidade de nenhuma das normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 1993

Fernando Alves Correia
Vítor Nunes de Almeida
Bravo Serra
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Messias Bento
Antero Alves Monteiro Dinis (vencido, nos termos da declaração junta)
António Vitorino (vencido, nos termos da declaração de voto junta)

Mário de Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Armindo Ribeiro Mendes (vencido nos termos da declaração de voto junta)
José Manuel Cardoso da Costa

Proc. nº 322/88

DECLARAÇÃO DE VOTO

I – Génese e enquadramento normativo dos
preceitos questionados no pedido

1 – O Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, procedeu à regulamentação do artigo XXI da Concordata, assinada entre o Estado Português e a Santa Sé, em 7 de Maio de 1940, sistematizando e completando a execução daquele princípio concordatário que dispõe sobre o “ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias”.

A disciplina contida nos seis artigos deste diploma, no essencial, pode condensar-se assim:
Artigo 1º – O Estado, tendo em conta o dever de cooperação com os pais na educação dos filhos, bem como os seus deveres gerais em matéria de ensino garante nas suas escolas o ensino das ciências morais e religiosas nos termos do presente diploma

Artigo 2º – De acordo com a especial representa- tividade da população católica do País, ministrar-se–á o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem expressamente desejo em contrário.

Artigo 3º – A disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte do currículo escolar normal nas escolas públicas referidas neste diploma, estando sujeita, salvaguardado o seu carácter específico, ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares, nomeadamente no que se refere ao apoio pedagógico devido a alunos e docentes.

Artigo 4º – A orientação do ensino da Religião e Moral Católicas é da exclusiva responsabilidade da Igreja Católica, competindo-lhe, nomeadamente, a elaboração e revisão dos programas da disciplina e a elaboração, edição e divulgação dos manuais de ensino da disciplina.

Artigo 5º – Os professores da disciplina de Religião e Moral Católicas serão contratados ou nomeados mediante proposta da autoridade eclesiástica competente, fazendo parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço e gozando dos direitos e deveres inerentes à sua função docente.
As condições em que o ensino da disciplina será ministrada nas escolas primárias serão objecto de regulamentação por portaria do Ministro da Educação.

Artigo6º – O ensino da Religião e Moral Católicas será assegurado, nos termos do presente diploma, nas escolas do magistério e nas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré–escolar e do ensino básico, com o carácter de disciplina facultativa dirigida à natureza das respectivas funções.

Todas as normas do Decreto-Lei nº 323/83, vieram a ser objecto de um processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade, que culminou no Acórdão nº 423/87, Diário da República, I série, de 26 de Novembro de 1987, no qual foi decidido não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º, e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, por violação do disposto nos artigos 168º, nº 1, alínea b), e 41º, nºs 1 e 3, da Constituição.

O juízo de rejeição da inconstitucionalidade ali emitido, confrontou aquelas normas com os princípios da separação entre o Estado e as igrejas, da não confessionalidade do ensino público e da liberdade religiosa (artigos 41º, nºs 3 e 4 e 43º, nº 3, da Constituição), fundando-se numa linha argumentativa que pode, nos seus traços essenciais, descrever-se do modo seguinte:

A Constituição veda toda e qualquer orientação religiosa do ensino público, assim como proíbe que as escolas públicas possam funcionar como agentes do ensino religioso.
Mas, nada impede que o Estado possa facultar às diversas igrejas, em condições de igualdade, a possibilidade de estas ministrarem ensino da religião nas escolas públicas.
Os princípios constitucionais serão afrontados quando o
Estado, quebrando a neutralidade que deve guardar nesta matéria, autoriza que as suas escolas ministrem o ensino de uma qualquer religião, outro tanto não sucedendo já quando o mesmo Estado, enquanto dinamizador dos valores e interesses socialmente legítimos que deve garantir e desenvolver, permite que nas escolas públicas esse ensino seja ministrado pelas confissões religiosas.
O Estado, por força do texto concordatário, obrigou-se a que, em certas escolas públicas, fosse ensinada uma determinada matéria de natureza e conteúdo confessional, não existindo qualquer impedimento à concretização desse compromisso internacionalmente assumido, a menos que dele resulte ofensa constitucional.
A caracterização da natureza estadual ou confessional de tal ensino nas escolas públicas, há-de extrair-se do conjunto de elementos essenciais que o informam, determinam e condicionam, sem prejuízo de poderem também assumir alguma relevância, certos enquadramentos formais que sejam especialmente significativos.
Ora, a acentuação predominante e verdadeiramente caracterizadora do ensino a que se reporta o Decreto-Lei nº 323/83, aponta para a sua natureza confessional, isto é, trata-se de um ensino ministrado na escola por uma confissão religiosa, e não de um ensino ministrado na escola pela própria escola.

O diploma em causa não institui, assim, um ensino religioso que possa haver-se como tarefa pública, como tarefa do Estado, como função da própria escola. Institui, sim, um ensino religioso, ministrado pela Igreja e da sua exclusiva responsabilidade.

Deste modo, pode dizer-se que a doutrina estabelecida no Acórdão nº 423/87, teve por conciliável o regime do ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas públicas a que se refere o Decreto-Lei nº 323/83 (dentro do quadro normativo circunstancial então existente), com aqueles princípios constitucionais (e como corolário dos mesmos, os princípios da não confessionalidade do Estado e da liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas), na medida em que, por força da caracterização desse ensino, se concluiu no sentido de não revestir ele a natureza de um ensino estadual a cargo da escola, mas sim de um ensino confessional a cargo da Igreja, limitando-se o Estado a proporcionar à confissão religiosa os meios logísticos e financeiros indispensáveis à sua concretização.

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2 – O universo normativo regulador do ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas, veio, entretanto a ser acrescentado por diversos diplomas, entre os quais se incluem, a Portaria nº 333/86, de 3 de Julho, que estabelece normas adequadas à leccionação, no ensino primário, da disciplina de Religião e Moral Católicas, e a Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro, que institui a disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas superiores de educação e nos centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico.

Estes diplomas, expedido o primeiro, ao abrigo do artigo 5º, nº 3 e o segundo, ao abrigo do artigo 6º, ambos do Decreto-Lei nº 323/83, vieram a ser questionados, no presente processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade, por imputação a algumas das suas normas (no caso da Portaria nº 333/86) ou a todas elas (no caso da Portaria nº 831/87), do vício de inconstitucionalidade.

O signatário da presente declaração, na qualidade de primitivo relator do processo, procedeu à elaboração de um memorando em conformidade com o disposto no artigo 65º da Lei do Tribunal Constitucional, propondo como solução, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos nºs 2º, 11º, 14º (no segmento que se reporta ao ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas pelo professor primário da respectiva turma) e 23º (no segmento relativo à formação dos professores dessa disciplina), da Portaria nº 333/86 e de todos os números da Portaria nº 831/87, em ambos os casos por violação do disposto nos artigos 115º, nº 5, 168º, nº 1, alínea b), 41º, nº 4 e 43º, nº 3, da Constituição.

Esta tese não logrou triunfar e porque o signatário, contra a decisão tomada no acórdão, manteve o entendimento perfilhado no memorando, votou vencido com base nas razões que a seguir vão ser expostas.

Antes porém, na qualidade de relator do Acórdão nº 423/87, que registou, aliás, uma impressiva divisão de opiniões dos juízes que integravam então o Tribunal Constitucional (cfr. as respectivas declarações de voto), o signatário da presente declaração não receia afirmar que a interpretação conforme à Constituição ali ensaiada, se situou no limiar último da constitucionalidade, por serem muito ténues já, os traços de caracterização do ensino consagrado naquelas normas, como ensino confessional alheio à escola e ao Estado, sem embargo de, apesar de tudo, este se apresentar ainda revestido de tal natureza.

Como não se coíbe de afirmar agora, antecipando a conclusão a extrair do desenvolvimento argumentativo subsequente, que as normas controvertidas no presente processo, examinadas à
luz do entendimento definido no Acórdão nº 423/87, deveriam haver-se por inconstitucionais.
É que, o espaço normativo aqui questionado, revela-se, quando confrontado com o do processo onde se gerou aquele aresto, substancialmente diverso, pois que, entretanto, o Estado passou a assumir no ensino da religião e moral católicas ministrado nas escolas públicas um qualificado protagonismo então ainda não existente.

Este acrescido protagonismo ressalta, com nitidez, da confluência de diversos vectores de raiz cultural, financeira e organizacional, radicados, desde logo, nos textos, das Portarias nºs 333/86 e 831/87, que entre si se conexionam e completam.

O Estado criou, através destes diplomas e de outros que com eles se articulam, uma dupla estrutura organizatória, de base profissional permanente, dirigida ao ensino da religião e moral católicas nas escolas primárias: de um lado, autorizou o professor da turma, professor do Estado e não da igreja, a ministrar aos seus próprios alunos aquela disciplina; de outro lado, autorizou que em certas escolas superiores fosse concedida formação pedagógico-religiosa aos respectivos alunos, não tanto com o fim de a estes ser assegurado um desenvolvimento ou enriquecimento individual, mas com o específico objectivo de mais tarde, virem eles a utilizar tal formação como professores daquela disciplina nas escolas públicas.

Ao contrário do que sucedia no conjunto de normas sindicadas naquele acórdão (o professor de religião e moral católicas não dispunha, enquanto tal, de vinculação efectiva e permanente ao Estado, não lhe era por este assegurada formação pedagógico-religiosa, e não actuava, em caso algum, na dupla veste de professor do Estado e professor da Igreja), o regime jurídico estabelecido pelas portarias sub judice denuncia um tal empenhamento do Estado na execução de uma tarefa exclusiva da igreja, o ensino religioso assume ali uma tão acentuada dimensão de ensino público que, desde logo, não pode deixar de se traduzir em afrontamento aos princípios da separação entre o Estado e as igrejas e da não confessionalidade do ensino público.

Com efeito, o ensino definido naqueles diplomas, revela um tão marcado apoio do Estado à instrução religiosa que esta, ao menos na sua visível projecção exterior, se apresenta como coisa pública, como coisa do Estado.

Semlhante sistema não pode dispor claramente, de apoio constitucional. As interpretações que em sentido contrário se possam fazer não deixarão de revelar um entendimento legal da Constituição e não um entendimento constitucional da lei.
***

Nos desenvolvimentos subsequentes seguir-se-á a ordem de exposição dos temas adoptada no memorando e depois seguida no acórdão, apreciando-se assim, sucessivamente, as questões da inconstitucionalidade orgânica e material daquelas normas, concretamente as normas dos nºs 2º, 11º, 14º e 23º da Portaria nº 333/86 e as normas de todos os números que constituem a Portaria nº 831/87.

Muito embora o acórdão haja considerado as normas dos nºs 1 e 20 da Portaria nº 333/86, como fazendo parte do objecto do pedido, sobre elas emitindo também um juízo de não inconstitucionalidade, nada se dirá a seu respeito por, quanto a elas, haver votado em sintonia com a decisão tomada pelo Tribunal.

*///*

II – A inconstitucionalidade orgânica das
normas dos nºs 2º, 11º, 14º e 23º da Portaria nº 333/86

1 – A Portaria nº 333/86, nas normas sob apreciação, dispõe assim:

2º – No caso de o professor da turma assumir a docência da disciplina de Religião e Moral Católicas, a mesma será ministrada, durante a semana, no tempo lectivo mais adequado sob o ponto de vista da articulação pedagógica da planificação escolar.

11º – Quando a disciplina de Religião e Moral Católicas estiver a cargo do professor da turma, os alunos que a não frequentem deverão enquanto decorrer a aula:
a) Ser distribuídos, em grupos, por outras turmas a fim de serem ocupados em actividades escolares;
b) No caso de não ser possível aplicar o estabelecido na alínea anterior deverão os alunos ser ocupados pelos pais, encarregados de educação ou outros elementos da comunidade.

14º – A disciplina de Religião e Moral Católicas será ministrada por uma das pessoas a seguir mencionadas.
a) Professor do ensino primário;
b) Pároco da freguesia ou outra pessoa idónea.

23º – O apoio pedagógico e a formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas serão facultados pelos serviços do Ministério da Educação e Cultura, em condições idênticas às previstas para as outras disciplinas.

Talqualmente sustentara no memorando, votei no sentido da inconstitucionalidade orgânica destas normas, considerando para tanto, na norma do nº 14º, apenas o segmento relativo ao ensino do professor primário que seja simultâneamente professor da turma e na norma do nº 23º, tão só o segmento respeitante à formação dos professores da disciplina de Religião e Moral Católicas por parte dos serviços do Ministério da Educação.

A matéria relativa às condições de leccionação, no ensino primário, da disciplina de Religião e Moral Católicas, inscreve-se na área da competência reservada da Assembleia da República e assim sendo, a Portaria nº 333/86, como regulamento executivo, apenas podia “enunciar os pormenores e minúcias do regime que o legislador involuntariamente omitiu”, “não se substituindo em nenhuma medida à lei, não dando vida a nenhum preceito jurídico `novo’ ou originário, limitando-se a repetir os preceitos ou regras de fundo que o legislador já editou” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1/92, Diário da República, I série-A, de 20 de Fevereiro de 1992).

Com efeito, aquela normação pertence ao núcleo dos direitos, liberdades e garantias, havendo assim de se conter nos limites demarcados pelo artigo 5º, nº 3 do Decreto-Lei nº 323/83, ao abrigo do qual foi aprovada, e complementarmente, nos outros limites estabelecidos no diploma, onde se definem as “condições em que o ensino é ministrado nas escolas públicas” nas quais se incluía o então ensino primário, hoje em dia, 1º ciclo do ensino básico (Lei nº 46/86, de 14 de Outubro).

Acompanhando embora o sentido geral deste entendimento, o acórdão acaba por concluir que as normas sob apreciação “não se encontram em rota de colisão com os artigos 115º, nº 5, e 168º, nº 1, alínea b), da Constituição, porque, não contêm normação inovatória, de carácter interpretativo ou integrativo, em área coberta pela reserva de lei”.

Tentar-se-á demonstrar que as coisas não são assim, cotejando para tanto as normas da Portaria nº 333/86 com o correlativo quadro de previsão contido no diploma autorizador.

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2 – Tem-se por seguro que aquelas normas, ao contrário do que se concluiu no acórdão, criam “regras de fundo novas”, instituem “preceitos originários e estatuição primária” inscritos no âmbito de uma matéria reservada, como é a que se reporta à definição das condições em que o ensino da religião e moral católicas é ministrado nas escolas primárias.

Vejamos porque.

O ensino básico compreende três ciclos sequenciais (o 1º de quatro anos, o 2º de dois anos e o 3º de três anos), organizados em termos de no 1º ciclo (que corresponde ao antigo ensino primário) o ensino ser globalizante, da responsabilidade de um professor único, e nos 2º e 3º ciclos (que correspondem às escolas preparatórias e secundárias) o ensino estar organizado, respectivamente, por áreas interdisciplinares de formação básica e em regime de professor por área e segundo um plano curricular unificado, integrando áreas vocacionais diversificadas, e em regime de um professor por disciplina ou grupo de disciplinas (cfr. artigo 8º da Lei nº 46/86).

Deste modo, a situação que se verifica no ensino primário – o professor da turma é simultaneamente o professor da disciplina da Religião e Moral – não pode ocorrer nas escolas preparatórias e secundárias a que se refere o artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 323/83, já que nestas escolas existem diversos professores por áreas, disciplinas ou grupos de disciplinas.

Ora, a acumulação subjectiva que se verifica no professor da turma, em termos de lhe pertencer, simultaneamente, o ensino globalizante do Estado e da escola e o ensino da religião e moral de uma confissão religiosa, traduz uma realidade cultural, pedagógica e normativa, inteiramente nova e de todo alheia ao sistema previsto no Decreto-Lei nº 323/83.

Esta realidade atravessa e impressiona marcadamente as normas dos nºs 2º, 11º e 14º da Portaria nº 333/86 e situa-se para além de qualquer credencial autorizadora contida naquele decreto-lei, no qual não existe, pela própria natureza das coisas, preceito algum susceptível de funcionar neste domínio como preceito originário.

Refere-se no acórdão a este respeito, que as opções sobre quem pode ser professor da disciplina de Religião e Moral Católicas não foram adoptadas ex novo pelo nº 14º da Portaria pois que as mesmas já se encontravam, nas suas linhas essenciais, definidas nos nºs 1 e 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 323/83 e no artigo XXI da Concordata.

Este entendimento não é sustentável.

Tendo-se presente o conteúdo destas normas, logo se verifica que nelas não se prevê nem se contempla o tipo de situações criadas pelo facto de o professor da turma ser também o professor da disciplina de religião e moral; tais normas visam uma outra realidade, concretamente, o modo de contratação e provimento de tais professores e a definição do seu quadro estatutário próprio e específico.

Diversamente, a norma do nº 14º da Portaria nº 333/86, que aliás é tributária, não como se diz no acórdão, do Decreto-Lei nº 323/83, mas antes da Portaria nº 1077/80, de 18 de Dezembro, por seu turno inspirada na Portaria nº 21490, de 25 de Agosto de 1965 [nestes dois diplomas já se previa, efectivamente, que a disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário fosse ministrado por uma das pessoas a seguir mencionadas: (a) Pároco da freguesia; (b) Outro sacerdote ou membro de instituto religioso; (c) Professor do ensino primário; (d) Outra pessoa idónea], conduz a que o ensino daquela disciplina pelo professor da turma ou por outra pessoa, fique dependente das indicações fornecidas pela própria confissão religiosa, o que não pode deixar de se traduzir na adopção de uma opção fundamental não assumida directa ou indirectamente, pelo decreto-lei autorizador, pois que este, a tal respeito, não contém qualquer norma ou princípio orientador.

E as normas dos nºs 2º e 11º assumem-se depois como complemento de estatuição daquela outra, regendo sobre aspectos logístico-pedagógicos consequenciais da assumpção pelo professor da turma, relativamente aos seus próprios alunos, da docência da disciplina religiosa. Estas normas, tributárias da norma do nº 14º, acabam por dispor como ela, de um conteúdo originário e inovador, não radicado no texto do Decreto-Lei nº 323/83, mas assumido com autonomia pelo próprio diploma em que se inscrevem.

Não se aceita assim o juízo do acórdão, segundo o qual elas encerram “preceitos meramente executivos, pois referem-se aos pormenores técnicos relacionados com a organização do ensino da disciplina de Religião e Moral quando o professor desta for simultaneamente o professor das outras disciplinas na mesma turma”.

A admitir-se esta conclusão, haveria de dizer-se que um tal conteúdo puramente executório teria por objecto o estabelecimento de pormenores organizatórios e de execução da disciplina contida originariamente na Portaria nº 333/86 e não já no Decreto-Lei nº 323/83, com o qual tal matéria nada tem a ver.

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3 – Ao contrário do que se sustentou e decidiu no acórdão, entende-se que a norma do nº 23º da Portaria nº 333/86, na parte em que prevê que a “formação dos professores no domínio da Religião e Moral Católicas seja facultada pelos serviços do Ministério da Educação, em condições idênticas às previstas para outras disciplinas”, representa uma estatuição diferente, alargada e inovatória relativamente à que consta do artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 323/83.

Este preceito dispõe que a disciplina de Religião e Moral Católicas está sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares, nomeadamente no que se refere às condições gerais de matrícula e apoio pedagógico devido a alunos e docentes, não se aludindo porém, como aliás não se alude em todo o articulado em que se integra, a uma concreta e expressa actividade formativa a cargo do Estado.

A formação prestada aos professores pelo Ministério da Educação aparece originariamente na Portaria nº 333/86, vindo depois, a ser integrada e desenvolvida num todo mais vasto, no qual se incluiu a Portaria nº 831/87 (cfr. a este respeito, o Despacho Normativo nº 144/ME/88, de 19 de Agosto, Diário da República, II série, de 2 de Setembro de 1988, e o Despacho nº 18/ME/91, de 14 de Fevereiro, Diário da República, II série, de 7 de Março de 1991).

Sustenta-se no acórdão que o Estado “também deve criar condições para que os professores da disciplina da Religião e Moral Católicas tenham acesso a formação fornecida directamente pela entidade eclesiástica ou por pessoas por esta expressamente indicadas”.

Em parte alguma do Decreto-Lei nº 323/83 se capta e surpreende semelhante entendimento, que, preservando embora a responsabilidade pedagógica da igreja, acaba por cometer ao Estado, uma nova e acrescida atribuição, que passa não já pela colaboração com a igreja no ensino religioso dos alunos que frequentam as suas escolas, mas sim pela própria formação religiosa dos professores destes alunos.

A norma, dado o seu teor inovatório, não pode deixar de se considerar orgânicamente inconstitucional.

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III – A inconstitucionalidade material das normas
dos nºs 2º, 11º, 14º e 23º da Portaria nº 333/86

1 – Já atrás se fez referência ao Acórdão nº 423/87, que apreciou, em processo de fiscalização sucessiva, a constitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 323/83, deixando-se assinalados alguns dos fundamentos que serviram de suporte à decisão ali proferida.

Ora, numa linha de continuidade daquele aresto, tendo em conta a complexidade de que se revestiu a interpretação conforme à Constituição ali ensaiada e o sentido último da doutrina por esta forma definida a propósito das regras e condicionamentos do ensino religioso nas escolas públicas, o signatário da presente declaração não tem dúvidas em repetir que as normas sob apreciação violam os princípios da separação entre o Estado e as igrejas, da não confessionalidade do ensino público e da liberdade religiosa.

Não cabe agora fazer largos desenvolvimentos sobre o alcance de cada um destes princípios constitucionais, bastando dizer, centrando a questão na sua nuclearidade essencial, que ao Estado não cabe desempenhar funções próprias das igrejas, designadamente assumir quaisquer tarefas ou actividades de formação religiosa, e que o ensino da religião nas escolas públicas só é lícito quando seja inteiramente função e responsabilidade das respectivas confissões.

Ora, o regime do ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas do 1º ciclo do ensino básico contêm, no plano das normas sob exame, significativas diferenças relativamente ao ensino da mesma disciplina nas escolas preparatórias e secundárias, ministrado a coberto do Decreto-Lei nº 323/83, como aliás logo se verificou a propósito da questão da inconstitucionalidade orgânica.

A primeira e mais significativa diferença reside no facto de aquela disciplina poder ser leccionada pelo próprio professor da turma, apresentando-se este, na veste de professor único, simultaneamente como professor do ensino religioso e do ensino do Estado.

E com isto se passará ao exame da matéria constante das normas dos nºs 2º, 11º e 14º, que justificam uma apreciação conjunta, por força da interdependência entre elas existente.

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2 – Referiu-se, em passo anterior, que a caracterização estadual ou confessional do ensino religioso nas escolas públicas, há-de derivar do conjunto de elementos materiais e formais que o informam, determinam e condicionam.

Ora, no ensino da disciplina da Religião e Moral Católicas ministrado pelo professor da turma aos seus próprios alunos, apenas se poderia agenciar a favor da sua caracterização como um ensino tendencialmente confessional a circunstância de tal ensino ser, no plano formal, da responsabilidade da Igreja Católica – o professor é proposto pelo serviço diocesano competente à direcção escolar respectiva e os programas e manuais da disciplina são da responsabilidade do episcopado.

Tudo o mais, todos os outros elementos ou índices de caracterização daquele ensino denunciam porém a sua natureza estadual.

Com efeito, não é possível dizer-se aqui, como se disse no Acórdão nº 423/87, a propósito do ensino ministrado nas escolas preparatórias e secundárias, que aquele ensino é um ensino da igreja na escola, que a igreja vai à escola ensinar religião e moral católicas.

E não é possível dizer-se isso, porque quem lecciona aquela disciplina está na escola, mais do que isso, é a própria escola, enquanto seu professor único e exclusivo.

O professor primário é um funcionário público, provido em lugar dos quadros permanentes da Administração, pago pelas verbas do Orçamento do Estado, para ministrar o ensino próprio do Estado, e que, na sequência de um pedido da Igreja, passa a ensinar aos seus próprios alunos matérias específicas da ordem confessional.

Esta acumulação subjectiva de funções, este desempenho simultâneo de uma actividade do Estado e de uma actividade da Igreja, traduz-se numa dupla representação não conciliável com o princípio da separação entre o Estado e as igrejas.

Não vale dizer em contrário que o professor, quando ministra a disciplina religiosa, quando em missão canónica própria da Igreja, não actua em representação do Estado, como não serve afirmar, que esta última função dispõe de um regime pedagógico especial (voluntariado gracioso).

É que o núcleo essencial da separação pessoal reside no facto de a mesma pessoa, no exercício da mesma função, – a de professor daqueles alunos – representar simultaneamente a Igreja e o Estado.

O professor da turma, só por esse facto, está impedido de acumular o ensino das matérias curriculares com o ensino da religião e moral, pois que a proibição da dupla representação é inseparável do princípio da separação pessoal.

Mas, numa outra vertente das coisas, o facto de o professor da turma ser simultaneamente professor de religião e moral, envolve também violação do princípio da liberdade de religião, na medida em que os pais dos respectivos alunos podem sentir-se coagidos, contra as suas próprias convicções ou opções religiosas, a inscrever os filhos nas aulas daquela disciplina, por temerem as represálias do professor, confessadamente prosélito da respectiva confissão religiosa.

Escreve-se no acórdão, contra este tipo de argumentação estar-se perante um “risco em tudo igual ao daquele que existe quando professor é um ateu militante” risco que sempre vai implicado no exercício da liberdade religiosa.

Não pode porém recusar-se, que o facto de o professor da turma, enquanto professor da disciplina de Religião e Moral Católicas, se assumir pública, confessada e oficialmente como
“uma emanação da Igreja, gerado na comunidade de crentes” (utilizando as palavras do acórdão) transporta em si um forte potencial de condicionamento e limitação da liberdade religiosa, inteiramente diverso do que sucede quando um professor que apenas ministra disciplinas curriculares é, na sua vida privada, e à margem de qualquer projecção institucional, adepto de uma qualquer doutrina religiosa ou anti-religiosa.

Como também, desta acumulação subjectiva, em que o professor escolhido pela Igreja Católica é também professor do Estado, não deixará de se prespectivar a possibilidade de ao ensino das matérias curriculares vir a ser conferida uma certa dimensão ainda confessional, fruto da mundividência própria de quem aceitou, em nome da igreja, uma tarefa que se reconduz, em última análise, à defesa e divulgação do seu corpo de doutrinação moral e religiosa.

A inconstitucionalização da norma do nº 14º na parte respeitante ao ensino da disciplina religiosa pelo professor da turma envolve, como decorrência automática, a inutilização das normas dos nºs 2º e 11º, daquela tributárias, mercê da previsão subordinada que transportam.

Para além disto, entende-se ainda que a norma da alínea a) do nº 11º, ainda hoje aplicável, não obstante o disposto nos nºs 4 a 7 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 286/83, de 29 de Agosto, que regula os modos de ocupação dos alunos que não frequentam as aulas da disciplina de Religião e Moral Católicas, quando a regência desta couber ao professor da turma, impõe a estes alunos uma obrigação adicional de carácter discriminatório, constitucionalmente não consentida.

Não se acompanha o acórdão quando refere que “em relação aos alunos do ensino primário são constitucionalmente legítimas as normas que estabeleçam formas obrigatórias de ocupação dos alunos que não frequentarem a disciplina de Religião e Moral Católicas, enquanto decorrerem as aulas desta, no caso de a sua regência caber ao professor da turma”.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional italiano, citada no acórdão, é, aliás, muito sugestiva e particularmente convincente na demonstração da tese contrária que aqui se perfilha.

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3 – Aquando da apreciação da questão da inconstitucionalidade orgânica das normas da Portaria nº 333/86, sustentou-se que a norma do n.º 23 prevê um sistema inovador através do qual o Estado concede formação religiosa aos professores no domínio da Religião e Moral Católicas, sejam eles os professores primários que leccionam a disciplina, sejam os párocos da freguesia ou outras pessoas idóneas (cfr. supra, II, 3).

Daquela conclusão decorre, desde logo, a inevitável inconstitucionalidade material do preceito, por violação flagrante do princípio da separação entre o Estados e as igrejas.

O acórdão ensaiou a propósito desta norma e do conceito que nela se contêm, uma tentativa de interpretação conformadora que, como atrás já se referiu, não dispõe de suporte no seu texto e na sistemática de conjunto em que se inscreve, nem tão pouco, no artigo 5º, nº 3 do Decreto-Lei nº 323/83, utilizado como preceito autorizador.

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4 – No âmbito de apreciação das eventuais inconstitucionalidade materiais de que poderiam sofrer as normas da Portaria nº 333/86, aqui em causa, o acórdão concluiu no sentido de tais normas não poderem ser declaradas inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade condensado no artigo 13º da Constituição.

Para tanto, começou por se considerar que aquele diploma apenas regula a leccionação no ensino primário da disciplina de Religião e Moral Católicas, deixando de fora o ensino da religião de confissões não católicas, e recordou-se que o Despacho Normativo nº 104/89, de 7 de Setembro, apenas regulamenta a ministração, em regime de frequência facultativa, nas escolas públicas, de aulas de formação religiosa das diversas confissões religiosas que, para além da Igreja Católica se encontrem implantadas em Portugal, nos 2º e 3º ciclos do ensino básico e no ensino secundário, excluindo-se, assim, o primeiro ciclo do ensino público. Fez-se depois apelo ao Acórdão nº 423/87 na parte em que considerou potencialmente gerador de inconstitucionalidade por omissão, mas não inconstitucionalidade por acção, o tratamento privilegiado concedido por lei à Igreja Católica relativamente a outras confissões religiosas.

Entende-se, porém que as situações normativas ali invocadas – o Decreto-Lei nº 323/83 e a Portaria nº 333/86 – não são coincidentes nem tradutoras de uma mesma realidade, particularmente quando se tiver em atenção que na Portaria nº 333/86, apenas está em causa a leccionação da disciplina religiosa pelo professor da turma.

Neste caso, pela própria natureza das coisas, não é materialmente possível que um só e único professor possa ministrar aulas de diversas confissões religiosas.

No quadro normativo actual o professor da turma apenas poderá leccionar a disciplina de uma confissão religiosa (a da Igreja Católica), mas num quadro normativo aberto a outras confissões religiosas, ainda assim subsistiria o facto de tal ensino só poder reportar-se a uma única confissão (a unidade do agente impõe a unidade do ensino).

Deste modo, entre as normas dos nºs 2, 11º e 14º da Portaria nº 333/86, e as normas do Decreto-Lei nº 323/83, não se verifica uma situação paralela em termos de o Estado poder corrigir aqui, como ao menos parcialmente corrigiu, a desigualdade de tratamento entre a Igreja Católica e as outras confissões religiosas existente nas escolas do ensino preparatório e secundário (cfr. cit. Despacho Normativo nº 104/89).

O facto de o professor da turma poder ministrar, em simultâneo, o ensino da Religião e Moral Católicas e o ensino das disciplinas curriculares, contém em si um vício normativo estrutural que não pode ser eliminado através do alargamento desse sistema às outras confissões religiosas, por constituir um impossível lógico e material, encontrando-se a única resposta para tal vício, na eliminação do sistema que consente aquela dupla representação.

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IV – A inconstitucionalidade orgânica das
normas da Portaria nº 831/87

1 – Em conformidade com o disposto no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, “o ensino da Religião e Moral Católicas será igualmente assegurado, com a índole apropriada, nos termos do presente diploma, nas actuais escolas do magistério e nas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico, com o carácter de disciplina facultativa dirigida à natureza das respectivas funções”.

Este normativo contém previsão idêntica à que consta do primeiro trecho do artigo XXI da Concordata, pois que, como se referiu no Acórdão nº 423/87, as escolas nele referidas – actuais escolas do magistério e as destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico – constituem as escolas públicas “complementares e médias” nos dizeres do texto concordatário.

A Portaria nº 831/87, considerando a necessidade de dar execução ao estabelecido naquele preceito, veio prescrever no seu nº 1º que “as escolas superiores de educação e os centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico darão àqueles futuros docentes que o pretendam a formação adequada para poderem vir a assumir a educação moral e religiosa dos seus alunos, tendo em vista assegurar os direitos consignados no nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 323/83”.

Para os fins assim estabelecidos, o nº 2º do mesmo diploma determina “que os planos de estudo destinados à formação de educadores de infância e de professores do 1º ciclo do ensino básico incluirão uma disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica, a qual faz parte dos respectivos currículos como disciplina optativa dos mesmos”.

A elaboração do programa desta disciplina, bem como das suas alterações, nos termos do nº 4º da Portaria, “é da competência da Conferência Episcopal Portuguesa através da Comissão Episcopal da Educação Cristã, que os enviarão ao Ministério da Educação”.

Aos docentes da disciplina, por força do nº 7 do diploma que se vem citando, “aplicar-se-ão integralmente as regras do Estatuto da Carreira Docente legalmente vigente para a instituição de ensino superior em causa, acrescidas da obrigatoriedade de obtenção de anuência prévia para a contratação por parte do bispo da diocese”.

Sustentou-se no pedido, que a Portaria nº 831/87, – as normas atrás referidas contêm a disciplina essencial que aqui importa reter -, veio instituir inovatoriamente o ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas em escolas do ensino superior oficial, ensino esse não previsto na Concordata nem no Decreto-Lei nº 323/83.

Tal diploma, acrescentou-se, é organicamente inconstitucional, por dispor inovatoriamente em matéria regulada pela Lei nº 46/86 (Lei de Bases do Sistema Educativo) que apenas prevê o ensino religioso nas escolas dos ensinos básico e secundário, invadindo assim a esfera de competência legislativa reservada da Assembleia da República.

Num primeiro momento, o acórdão tratou da questão de saber se o artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 – norma habilitadora da portaria – teria sido revogado pelo artigo 47º, nº 3, da Lei nº 46/86, segundo o qual “os planos curriculares dos ensinos básico e secundário integram ainda o ensino da moral e da religião católica, a título facultativo, no respeito dos princípios constitucionais da separação das igrejas e do Estado e da não confessionalidade do ensino público”.

Com efeito, poderia entender-se que, por força deste preceito, a partir do início da vigência da Lei nº 46/86, o ensino da Religião e Moral Católicas se circunscreve aos ensinos básico e secundário, com a exclusão das escolas mencionadas no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, o que acarretaria, de imediato, a inconstitucionalização das normas da Portaria nº 831/87, em especial da norma do nº 1, que se projecta sobre todo o articulado.

O acórdão conclui no sentido da não revogação daquela norma por entender tratar-se de uma norma especial cuja previsão se dirige à indicação das escolas onde um certo ensino é ministrado e não já ao desenvolvimento e organização curricular da educação escolar.

Neste ponto específico, na continuidade, aliás, da posição proposta no memorando, votou-se em sentido coincidente com a solução definida no acórdão.

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2 – A Portaria nº 831/87, como diploma regulamentar da norma do artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 – norma respeitante às condições de ensino da Religião e Moral Católicas em determinadas escolas, com incidência no domínio da liberdade de religião, liberdade de ensino e sistema de ensino – há-de respeitar a disciplina jurídica ali definida, não podendo ultrapassar os limites constitucionais impostos aos regulamentos de execução.

Ora, como logo decorre da confrontação do preceito habilitador com diversas normas da portaria, verifica-se que esta utilizou uma nova terminologia, falando em escolas superiores de educação e centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, onde no decreto-lei se falava em escolas do magistério e escolas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico.

Sustenta-se no acórdão que, ao proceder deste modo, a Portaria nº 831/87, não introduziu qualquer inovação substancial na respectiva disciplina jurídica, apenas tendo precedido a uma actualização vocabular.

Não se tem por correcto este entendimento.

Com efeito, podendo embora afirmar-se que as instituições referidas na portaria são as sucessoras das escolas de magistério primário e das escolas de educadores de infância a que alude o artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, não pode deixar de se reconhecer que as normas fautoras dessa actualização contêm uma alteração estrutural e inovatória em relação ao preceito de habilitação.

Para tanto, basta ter presente que, ao contrário das escolas do magistério primário e das escolas de educadores de infância incluídas no ensino complementar e médio, as actuais escolas superiores de educação e os centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, integram o ensino superior [cfr. os artigos 11º, nº 1, 14º e 31º, nº 1 alíneas a) e b), da Lei nº 46/86].

A integração destas escolas no ensino superior não pode deixar de significar, relativamente ao grau de ensino e ao estatuto que antes detinham, uma acrescida e qualificada dimensão de natureza substantiva, desde logo no domínio dos seus objectivos, das regras de acesso e dos graus e diplomas por elas conferidas, o que se traduz, por parte das normas que operaram tal integração, a adopção de regras de fundo criadoras de uma estatuição inicial diversa da contida no acto legislativo a que deviam acatamento.

Tais normas, por tal facto, hão-de ser consideradas organicamente inconstitucionais.

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V – A inconstitucionalidade material das
normas da Portaria nº 831/87

1 – A instituição pela norma do nº 2 da Portaria nº 831/87, da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica nas Escolas Superiores de Educação nos centros integrados de formação de professores das universidades, destinadas aos educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, revela, como atrás já se referiu, a especial conexão existente entre este diploma e a Portaria nº 333/86, em especial na parte em que esta permite que a regência da disciplina de Religião e Moral Católicas, no ensino primário, seja da responsabilidade do professor da turma.

Deste modo, as considerações expostas a propósito da violação dos princípios da separação entre o Estado e as igrejas, da não confessionalidade do ensino e da liberdade de religião, pelas normas da Portaria nº 333/86, valem, nas suas linhas gerais, para as normas da portaria que agora se sindica.

O Estado não se limita, neste caso, a criar condições de facilitação material e logística à Igreja Católica a fim de esta melhor exercer as actividades que lhe são próprias.

Pelo contrário, através do sistema assim instituído, o Estado apossa-se de uma missão cujo exclusivo exercício pertence à igreja e desempenha-a como se de um verdadeiro sujeito activo se tratasse.

Assume, com efeito, a realização de uma tarefa que lhe está constitucionalmente vedada, qual seja, a de organizar e promover a formação religiosa dos futuros professores da disciplina de Religião e Moral Católicas.

A docência ministrada aos alunos dos cursos superiores que frequentam a disciplina de Educação de Moral e Religiosa Católica e Sua Didáctica só mediatamente é dirigida à sua formação humanística e religiosa, enquanto pessoas individualmente consideradas, pois que o seu objectivo directo e imediato, visa a actividade que no futuro esses alunos hão-de desempenhar como professores da disciplina religiosa.

Aquela docência, mais do que um ensino, traduz-se numa preparação formativa, de base instrumental, enquadrada num sistema complexo composto por diversos vectores em que o Estado sempre está presente, seja quando o professor ensina, seja quando o professor é formado e preparado para ensinar.

O Estado, neste quadro normativo, não se limita, num plano exterior às confissões religiosas, a auxiliar a actividade da Igreja Católica: apossa-se de uma parcela dessa actividade, passando ele próprio a desempenhá-la como se de coisa sua se tratasse.

De tudo isto há-de decorrer, necessariamente, a inconstitucionalidade material, das normas da Portaria nº 831/87.

Antero Alves Monteiro Dinis

Proc. nº 322/88
Plenário
Rel.: Consº. Alves Correia
(Consº. Monteiro Diniz)

DECLARAÇÃO DE VOTO

1. Os signatários votaram vencidos o presente acórdão, em que o Tribunal Constitucional decidiu não declarar a inconstitucionalidade de várias normas da Portaria nº 333/86, de 2 de Julho – relativa à regulamentação das condições de leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário -, bem como da totalidade das normas da Portaria nº 831/87, de 16 de Outubro – respeitante às condições que permitem assegurar o ensino de Educação Moral e Religiosa Católica e sua Didáctica nas escolas superiores de educação e nos centros integrados de professores das universidades, na formação de educadores de infância e de professores do 1º ciclo do ensino básico.

As razões da veemente discordância que se manifesta relativamente à conclusão e à fundamentação do acórdão radicam na profunda convicção de que o mesmo absolveu normas que padecem de flagrante, patente e inequívoca inconstitucionalidade, atingindo elementos essenciais da arquitectura do regime jurídico-político plasmado na Constituição da República.

Vejamos porquê.

I – CONSIDERAÇÕES GERAIS

2. O Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, pretendeu proceder a uma regulamentação da leccionação da Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas, invocando o artigo XXI da Concordata, “assinada entre o Estado Português e a Santa Sé em 7 de Maio de 1940 e confirmada pelo artigo II do Protocolo Adicional de 15 de Fevereiro de 1975, que o Decreto nº 187/75, de 4 de Abril, seguidamente aprovou para o efeito da sua ratificação”, “a doutrina de nova Constituição da República”, bem como os “mais recentes documentos da Igreja sobre a liberdade religiosa e a educação cristã, e ainda as sugestões facultadas pelo direito comparado no que se refere ao ensino da Moral e Religião”.

Este diploma legal foi objecto de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, relativamente a todas as suas normas, vindo a ser declarada apenas a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do nº 1 do seu artigo 2º, “na parte em que exige daqueles que não desejam receber o ensino da religião e moral católicas uma declaração expressa em tal sentido”, por violação do disposto nos artigos 168º, nº 1, alínea b), e 41º, nºs 1 e 3, da Constituição, e, consequencialmente, das normas contidas nos nºs 2 e 3 do mesmo artigo 2º, em função da declaração de inconstitucionalidade parcial do seu nº 1 (cfr. Acórdão nº 423/87 do Tribunal Constitucional, in Diário da República, I Série, nº 273, de 26 de Novembro de 1987). Acrescente-se que este acórdão integra várias declarações de voto, tendo um dos signatários da presente declaração, que já fazia então parte deste Tribunal, votado vencido quanto à não declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei nº 323/83.

3. Para os signatários da presente declaração, o sistema de ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas públicas, tal como se encontra delineado no referido Decreto-Lei nº 323/83, já por si, não respeita as exigências constitucionais.

Escreveu um dos signatários do presente texto na sua declaração de voto aposta ao citado Acórdão nº 423/87:

1. Votei vencido, […] por entender que as normas constantes do diploma em apreço, ao estabelecerem que o ensino da religião e moral católicas é ministrado pelas escolas públicas, integrando o respectivo currículo escolar normal, a expensas do Estado e através de agentes seus, violam o princípio da separação das igrejas do Estado, consignado no nº 4 do artigo 41º, o princípio da não confessionalidade do ensino público, vertido no nº 3 do artigo 43º, e o princípio da igualdade, reconhecido no artigo 13º da Constituição da República.

2. De acordo com a Lei Fundamental, “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado”, e é garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão”, sendo certo que “o ensino público não será confessional”, não podendo igualmente o Estado “atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Da conjugação destes preceitos resulta inequívoco que não é legítimo que o Estado assuma como coisa sua, adoptando-o oficialmente, o ensino de qualquer religião.[…]

Ora, o sistema consagrado no decreto-lei em análise contradiz frontalmente estas mencionadas disposições constitucionais.

Com efeito, o que nele se estabelece não é a faculdade de as diversas confissões religiosas ministrarem o ensino da sua religião aos alunos das escolas públicas que assim o desejarem, utilizando os edifícios dessas escolas e, eventualmente, recebendo subsídios do Estado para o efeito, o que ainda seria compatível com o texto constitucional. É, antes, o ensino da religião e moral católicas – é só dessa – aos alunos que não declararem expressamente que o não desejam, sendo certo que tal disciplina «faz parte do currículo escolar normal nas escolas públicas», «está sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares» e é ministrada por professores «contratados ou nomeados» pelas autoridades públicas e que «fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço», pelo que são verdadeiros e próprios agentes do Estado.

Os argumentos que se poderiam alinhar no sentido de sustentar que o ensino da religião e moral católicas previsto no diploma em apreço não é ensino ministrado pela escola pública, mas um ensino ministrado na escola, afiguram-se, salvo o devido respeito, totalmente improcedentes.

É bem verdade que «a orientação do ensino da religião e moral católicas é da exclusiva responsabilidade da Igreja Católica», à qual compete «a elaboração e revisão dos programas da disciplina», bem como «a elaboração e sequente edição e divulgação dos manuais de ensino», e que os professores são nomeados ou contratados «mediante proposta da autoridade eclesiástica competente».

Tal, porém, em nada altera o facto de a disciplina integrar o currículo escolar normal e de os respectivos professores serem agentes do Estado.

É que ninguém teria certamente dúvidas em considerar chocantemente inconstitucional um diploma em que, por absurdo, se viesse a estabelecer que a orientação do ensino das disciplinas, por exemplo, de Filosofia e de Biologia passava a ser da exclusiva responsabilidade de uma certa igreja, à qual caberia elaborar os correspondentes programas e propor a nomeação dos respectivos professores. Ora, a Constituição tanto proíbe a confessionalização do ensino público através da assunção do ensino religioso difuso – o que aconteceria neste último caso – como através do ensino religioso directo – como acontece no caso vertente.

Insiste-se, pois: nada pode escamotear a verdade insofismável de o ensino da disciplina em causa integrar o currículo escolar normal, pelo que o Estado o assume como res sua; e nada pode impedir que se apresente como evidente a situação de o Estado ter agentes seus cujo provimento é proposto pelas autoridades próprias de uma confissão religiosa.

Tudo isto, como se afirmou, em frontal e flagrante violação dos princípios da separação das igrejas do Estado e da não confessionalidade do ensino público.”

Na mesma declaração de voto acentuava-se que o Decreto-Lei nº 323/83 estabelecia uma situação de privilégio para uma confissão religiosa, em detrimento das outras confissões visto que estas últimas não gozavam de idêntica faculdade de ministrar nas escolas públicas o ensino das respectivas confissões, ocorrendo assim uma manifesta violação do princípio constitucional da igualdade.

Diferentemente da tese que fizera vencimento neste ponto, tese que agora foi maioritariamente retomada, ali se afirmava que não pode falar-se numa inconstitucionalidade por omissão respeitante à denunciada desigualdade, porque nenhuma disposição constitucional constitui o Estado no dever jurídico de ministrar – ou, mesmo, permitir que se ministre a expensas suas – o ensino de qualquer religião nas escolas públicas.

Por outro lado, tão-pouco seria possível negar a violação do princípio da igualdade com fundamento na circunstância de a maioria da população portuguesa professar a religião católica:

“É que, desde logo, a regra da maioria é manifestamente inaplicável para o efeito de inutilizar a operatividade do princípio da igualdade, dado que as situações que com este princípio se pretende salvaguardar, em primeira linha, são exactamente aquelas situações de desfavor que, em regra, afectam as minorias (cfr. nº 2 do artigo 13º).

Assim, a simples afirmação de que a maioria da população professa a religião católica é totalmente irrelevante para o efeito que daí se pretende extrair. Aliás, tal situação nunca poderia impedir que se devesse proporcionar o ensino religioso a outras confissões, sempre que numa dada escola existisse um número mínimo de alunos interessados nesse ensino.

É que o princípio da igualdade – ao exigir o tratamento igual do que é igual e o tratamento desigual do que é desigual – justificaria, por exemplo, que onde houvesse 300 alunos a pretender o ensino de uma dada religião e 30 alunos a pretender o ensino de uma outra se constituíssem 10 turmas para o ensino da primeira e apenas 1 turma para o ensino da segunda. Mas proscreve, com certeza, o sistema instituído no diploma em apreço, segundo o qual só uma confissão religiosa é admitida a ministrar o ensino da sua religião na escola pública.

Existe, assim, também, violação do princípio da igualdade”.

Por último, nessa ocasião referiu-se que não era possível invocar a existência de uma Concordata entre Portugal e a Santa Sé para afastar o vício de inconstitucionalidade detectado. Independentemente de se averiguar se algumas das disposições concordatárias não se tinham tornado supervenientemente inconstitucionais – sendo certo que a oposição de, pelos menos, algumas normas concordatárias com a Constituição era admitida pelo próprio Acórdão nº 423/87, como, aliás, vem sendo reconhecido pela doutrina [cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. I, Coimbra, 1984, págs. 251-252; Jorge Miranda, Liberdade Religiosa, Igreja e Estado em Portugal, in Nação e Defesa, nº 39, Julho-Setembro de 1986, págs. 131 e seguintes; do mesmo autor, A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, in Direito e Justiça, V, 1991, págs. 168 e seguintes; em sentido dubitativo, Mário Bigotte Chorão, Formação Eclesiástica e Educação Católica segundo a Concordata de 1940 (Artigos XX e XXI), in O Direito, ano 123 (1991), II/II, págs. 415 e segs.] – havia de ter-se em conta que ao Tribunal Constitucional apenas compete averiguar da conformidade das normas constantes do diploma em análise com a Constituição, havendo de ter-se por totalmente irrelevante a circunstância de tais normas se encontrarem, porventura, em sintonia com o disposto na Concordata:

É que a Concordata não tem valor constitucional, nem existe na Constituição Portuguesa disposição semelhante à do artigo 7º da Constituição Italiana, disposição essa que legitima que, na ordem interna daquele país, seja possível consagrar soluções idênticas ou aproximadas às do Decreto-Lei nº 323/83. Não se acompanha, portanto, o acórdão enquanto procura, no fundo, através de uma divagação histórica, demonstrar que existe na Constituição Portuguesa uma norma que dela não consta efectivamente, ou seja, uma norma de conteúdo idêntico à do artigo 7º da Constituição Italiana.

Ficou, assim, bem acentuada esta característica da Constituição portuguesa, de não contemplar especialmente nenhuma confissão religiosa e de se abster de fazer qualquer referência à Igreja Católica, diferentemente também do que sucede com a Constituição espanhola de 1978, cujo artigo 16º, nº 3, estabelece que “nenhuma confissão terá carácter estatal”, logo acrescentando, porém, que “os poderes públicos terão em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola e manterão as consequentes relações de cooperação com a Igreja Católica e as demais confissões”. Esta referência especial à Igreja Católica não constava da primeira versão dos trabalhos preparatórios da
Constituição espanhola de 1978, na qual se proclamava explicitamente a não confessionalidae do Estado; já no anteprojecto, todavia, se passou a falar de não-estadualidade, incorporando-se uma referência ao princípio da cooperação com as confissões religiosas; e a inclusão da Igreja Católica no texto do preceito resultou da aceitação, pela comissão de redacção, de uma proposta da UCD nesse sentido (cfr. L. Aguiar de Luque e R. B. Canales, Constitución Española 1978-19883, I, págs. 95-96; Garrido Falla e outros, Comentarios a la Constitución, págs. 200 e segs.). E tudo isto bem se compreende no contexto espanhol, sendo certo que, no tempo do franquismo, a lei espanhola dispunha que “a nação espanhola considera como título de honra a submissão à lei de Deus segundo a doutrina da santa Igreja católica, apostólica e romana, única, verdadeira, e fé inseparável da consciência nacional, que inspirará a sua legislação”, o que nunca teve paralelo na legislação portuguesa – mesmo no período salazarista – e, obviamente, muito menos o pode ter hoje.

As considerações constantes da declaração de voto que se vem seguindo – e que foi aposta, como vimos, ao citado Acórdão nº 423/87, a propósito do Decreto-Lei nº 323/83 – continuam inteiramente válidas e são aplicáveis, mutatis mutandis, às portarias impugnadas nos presentes autos.

Contudo, e como melhor se verá, existem, quanto a estas portarias, qualificados motivos para as mesmas serem consideradas inconstitucionais, ainda que à luz dos já excessivamente permissivos critérios adoptados no Acórdão nº 423/87 – agora, aliás, na prática, pura e simplesmente pulverizados, depois de esgotada a função que foram historicamente chamados a desempenhar.

II – PORTARIA Nº 333/86

A) Inconstitucionalidade orgânica

4. Esta portaria invoca a necessidade de dar cumprimento ao estabelecido no nº 3 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 323/83, de 5 de Julho, para justificar a sua edição.

Dispõe essa norma:

As condições em que o ensino da Religião e Moral Católicas será ministrado nas escolas primárias serão objecto de regulamentação por portaria do Ministro da Educação.

Segundo o acórdão que obteve vencimento, esta remissão para regulamento, em matéria conformadora de direitos, liberdades e garantias, seria legítima, face ao preceituado nos artigos 115º, nº 5, e 168º, nº 1, alínea b), da Lei Fundamental, porque “a matéria das condições a que deve obedecer o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas primárias, referida no artigo 5º, nº 3, do Decreto-Lei nº 323/83, não faz parte do núcleo das escolhas primárias que devem ser reservadas à normação originária do poder legislativo”, tese que teria sido, “ainda que apenas indirectamente”, acolhida no referido Acórdão nº 423/87, ao não se declarar a inconstitucionalidade orgânica da mesma norma.

Por outro lado, invocando o precedente do Acórdão nº 1/92, e citando Afonso Queiró, aceita-se no presente aresto que ao executivo seja permitido “editar regulamentos integrativos das lacunas da lei”, para “enunciar os pormenores e minúcias do regime que o legislador involuntariamente omitiu”. E sustenta-se que, in casu, as normas impugnadas “têm, de algum modo, o seu conteúdo predeterminado pela norma ou pelo conjunto de normas executadas”, não contendo “normação inovatória, de carácter interpretativo ou integrativo, em área coberta pela reserva de lei”.

Os signatários não subscrevem a tese de que, em matéria da exclusiva competência legislativa do Parlamento, designadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias, seja lícito ao legislador – no caso, ainda para mais, o legislador governamental (!!!) – remeter para regulamento, a seu bel-prazer, tudo aquilo que possa considerar secundário. E contestam peremptoriamente que o Acórdão nº 423/87 tenha abordado essa questão, “ainda que indirectamente”, porquanto, como parece evidente, ela sempre apenas se poderia traduzir, relativamente ao mencionado nº 3 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 323/83, numa questão de inconstitucionalidade material e não numa questão de inconstitucionalidade orgânica, como erradamente se pretende afirmar; e, como se verifica da mera leitura daquele aresto, do ponto de vista material, as normas do Decreto-Lei nº 323/83 apenas foram confrontadas com “os princípios da separação do Estado e das igrejas, da não confessionalidade do ensino público, da liberdade religiosa e da igualdade”.

Por outro lado, também não subscrevem os signatários a tese sustentada no Acórdão nº 1/92, relativamente ao sentido e alcance do preceituado no artigo 115º, nº 5, da Constituição (cfr. votos de vencido apostos a essa decisão).

Seja como for, a construção laboriosamente feita pela tese vencedora, no sentido de tentar demonstrar que a portaria não consagra soluções inovatórias, claudica, desde logo, por silenciar um dado de significativa importância: o de que ainda que se pudesse, por suposição, considerar a indicada portaria como meramente executiva do Decreto-Lei nº 323/83, numa certa leitura que deste diploma ainda poderia ser feita, a verdade é que essa leitura veio precisamente a ser posta em causa pelo Acórdão nº 423/87, que procurou salvar a constitucionalidade daquele decreto-lei, considerando que nele apenas se estabelecia um ensino religioso ministrado na escola pela confissão religiosa e não já um ensino confessional ministrado pela própria escola.

Daí – assinale-se – o mais que revelador voto de vencido no presente acórdão do próprio relator do Acórdão nº 432/87.

Por isso, a mera conformidade aparente com o teor literal do Decreto-Lei nº 323/83 não garante por si só a conformidade constitucional da portaria, do ponto de vista orgânico. E, no seu conjunto, a referência à oficialização do programa, a previsão da formação dos professores da disciplina e, sobretudo, a atribuição ao professor da turma da incumbência de ministrar o ensino da Religião e Moral Católicas denotam a clara vontade de ir mais além do que se fora no Decreto-Lei nº 323/83, pelo menos na interpretação que a este fora dada pelo Acórdão nº 423/87.

Não cremos, sinceramente, que se possa afirmar de boa-fé – e não parece, aliás, que o acórdão chegue a fazê-lo – que a portaria em apreço, pelo seu conteúdo, nada acrescenta, em termos substanciais, ao que já constava do diploma legal que visa regulamentar. Mas, na nossa opinião, tanto basta para que ela devesse ser considerada organicamente inconstitucional.

Na verdade, tem-se por apurado que a oficialização do programa da disciplina , constante do nº 20º, é algo mais que a sua publicação por uma entidade oficial, sob pena de tal referência se ter por completamente inútil.

Mas, acima de tudo, afigura-se cristalino que, ao prever que a disciplina de Religião e Moral Católicas seja ministrada pelo próprio “professor da turma do ensino primário” – e, desse modo, consentindo, por um lado, a acumulação funcional do ensino de uma confissão com o ensino que ao Estado cumpre constitucionalmente assegurar e, por outro lado, criando um sistema de organização da escola e das turmas que se traduz, para além do mais, num tratamento diferenciado entre os alunos que frequentam a disciplina e aqueles que a não frequentam -, se aprovaram preceitos jurídicos novos e originários, que constituem opções políticas fundamentais, relativamente às quais, aliás, tem ocorrido aceso debate noutros países, não podendo, pois, entender-se que resultam apenas do disposto no diploma autorizador.

A afirmação do acórdão de que os nºs 1 e 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 323/83 e o artigo XXI da Concordata de 1940, “atenta a sua formulação genérica, abarcam tanto as hipóteses em que o professor da disciplina da Religião e Moral Católicas é uma pessoa que ainda não pertence ao corpo docente da escola primária, como aqueles em que o mesmo já integra o núcleo de docentes do referido estabelecimento de ensino” não elimina, assim, o carácter inovatório do regime decorrente da admissão do princípio de que o professor da turma pode cumulativamente assegurar o ensino de uma certa religião (e de uma certa moral). Com efeito, o que importa saber é se a escolha entre as diversas hipóteses possíveis constitui ou não uma opção essencial – o que parece indiscutível no caso vertente, tendo em conta, desde logo, a controvérsia política e jurídica que pode gerar -e tem gerado -, quer em Portugal, quer noutros países.

Considerar, de outra banda, por exemplo, que o nº 11º da Portaria, enquanto norma estatuidora sobre as modalidades de ocupação dos alunos que não frequentem esta disciplina, é meramente executiva e de natureza organizativa, revela atitude bem pouco exigente, para não dizer perigosamente laxista, quanto à reserva de lei e à reserva da intervenção parlamentar, em matéria de conformação de direitos, liberdades e garantias.

Importa notar, com efeito, que nem a Lei nº 4/71, de 21 de Agosto, nem o Decreto-Lei nº 323//83 previam que o ensino da Religião e Moral Católicas pudesse ser confiado ao professor da turma, no primeiro grau do ensino básico, em termos de implicar, para além do mais, que os alunos cujos pais optem pela não frequência da disciplina tenham de ser distribuídos por outras turmas ou confiados aos pais ou a terceiros durante os períodos lectivos em que fiquem privados da presença do professor pelo indicado motivo – opção tanto mais controvertida quanto é, até, considerada inadmissível pela Corte Costituzionale italiana, como se reconhece no próprio acórdão, o qual, depois, de forma curiosa e surpreendente, vem considerar, essa questão como um mero pormenor organizativo (!!!).

Também não está em causa saber a quem cabe a escolha do encarregado da leccionação – essa escolha é, necessariamente, da responsabilidade da autoridade eclesiástica competente – nem, tão-pouco, se o professor da turma pode ou não ser considerado pessoa idónea, na perspectiva da mesma autoridade eclesiástica. O que importa é determinar se, do ponto de vista da comunidade política, é – ou não – importante precisamente a possibilidade de a escolha recair sobre o professor da turma, funcionário público que é o responsável único da leccionação dos seus alunos.

Não se percebe, pois, o fundamento da afirmação categórica, sob forma pretoriana, de que as normas dos nºs 11º e 14º, por exemplo, “não se encontram, assim, em rota de colisão com os artigos 115º, nº 5, e 168, nº 1, alínea b), da Constituição, porque não contêm normação inovatória, de carácter interpretativo ou integrativo, em área coberta pela reserva da lei”.

Entende-se também que, ao referir-se que o Ministério da Educação facultará formação aos professores da disciplina, se introduz uma estatuição diferente e mais ampla relativamente à que consta do artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 323/83, já que, enquanto neste se prevê apenas um mero apoio a alunos e docentes, naquele se passou a utilizar um conceito de conteúdo mais extenso e qualificado – formação -, aliás abundantemente utilizado na legislação respeitante à organização das carreiras docentes da função pública, o que logo traduz a sua diversa e mais intensiva realidade.

Não pode, assim, deixar de considerar-se que estas normas regulamentares introduzem um regime inovatório em matéria de direitos, liberdades e garantias e, por isso, torna-se evidente para os signatários que são organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição.

B – Inconstitucionalidade material

5. No que toca à questão da invocada inconstitucionalidade material dos preceitos impugnados da Portaria nº 333/86, já atrás os signatários, ao transcreverem partes da declaração de voto junta por um deles ao Acórdão nº 423/87, deixaram enunciadas algumas das razões pelas quais discordam radicalmente da tese que fez vencimento no presente aresto.

Com efeito, os fundamentos do juízo sobre a inconstitucionalidade material dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei nº 323/83 aplicam-se inteiramente a todas ou a quase todas as normas impugnadas da Portaria nº 333/86, visto que esta visou adequar o regime geral daquele decreto-lei ao ensino da disciplina no ensino primário – ou, para se utilizar a nomenclatura constante da legislação hoje em vigor, no primeiro ciclo do ensino básico, de carácter globalizante, “da responsabilidade de um professor único, que pode ser coadjuvado em áreas especializadas” (art. 8º, nº 1, alínea a), da Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº 46/86, de 14 de Outubro). E considerando-se inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, por exemplo, o regime de privilégio conferido à Igreja Católica na totalidade dos graus de ensino abrangidos, o mesmo se há-de necessariamente dizer do regime específico de um dessses graus de ensino – no caso, o primário.

Independentemente desta posição crítica face à doutrina do Acórdão nº 423/87, os signatários procurarão, sempre que possível, colocar-se no ponto de partida assumido por este último aresto, para verificar se procede a tese maioritariamente acolhida no presente acórdão. Importa, para isso, apurar a compatibilidade entre o próprio Decreto-Lei nº 323/83 e a Portaria nº 333/86, considerando as normas daquele diploma na interpretação conforme à Constituição feita pelo mesmo Acórdão nº 432/87.

Para tanto, cumpre analisar mais de perto as normas impugnadas, no contexto da portaria em causa, a qual estabelece, em suma:

a) que a disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte integrante do currículo do ensino primário, sendo da responsabilidade da Igreja Católica e cabendo a elaboração do respectivo programa ao episcopado;
b) que compete ao Estado a oficialização e publicação desse programa;
c) que a disciplina pode ser ministrada pelo professor do ensino primário, isto é, pelo próprio professor da
turma;
d) que, em tal caso, a disciplina será ministrada durante o horário escolar, devendo os alunos que a não frequentem ser ocupados em actividades escolares alternativas ou, se isso não for possível, pelos pais ou encarregados de educação;
e) que o Estado providenciará a formação dos professores, em termos idênticos aos das restantes disciplinas.

6. A Constituição portuguesa impõe o princípio da separação das igrejas e das outras comunidades religiosas do Estado (artigo 41º, nº 4), estabelecendo que o ensino público não será confessional (artigo 43º, nº 3).

O Decreto-Lei nº 323/83 afirma expressamente que visa regulamentar o artigo XXI da Concordata de 1940, artigo que consagra um regime de ensino público da religião católica (ensino religioso directo), ao mesmo tempo que determina que “o ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País” (ensino religioso difuso). Mas é óbvio que esta última solução concordatária não se compagina com a Constituição de 1976, como é generalizadamente reconhecido, embora fosse conforme com a Constituição de 1933, a partir da
revisão de 1935.

A verdade, porém, é que o Acórdão nº 423/87 procurou salvar a constitucionalidade dos artigos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei nº 323/83, lendo-os, não como se consagrassem um regime de ensino estadual da religião católica, mas antes como se assegurassem apenas um ensino confessional na escola pública.

Contudo, quando se chega ao ponto de permitir que não só o pároco de freguesia ou outra pessoa idónea, designadas pela autoridade eclesiástica, possam ministrar o ensino da disciplina da Religião e Moral Católicas, mas ainda que tal ensino possa ser confiado ao próprio professor da turma – enquanto funcionário público e durante o horário em que devia estar a ministrar outras disciplinas curriculares -, então seguramente que já se não pode entender que ainda se esteja apenas perante um ensino ministrado na escola pela confissão religiosa.

De facto, a confusão na mesma pessoa das qualidades de professor da turma – encarregado de ministrar todas as disciplinas curiculares – e de professor de Religião e Moral Católicas – durante o tempo lectivo – aponta insofismavelmente para um ensino religioso ministrado pela própria escola pública.

Aliás, o acórdão que obteve vencimento reconhece expressamente a pertinência das dúvidas de constitucionalidade quanto à regulamentação constante dos nºs 2º, 11º e 14º da Portaria nº 333/86.Escreve-se aí:

É inegável que o facto de ser o mesmo professor a leccionar as disciplinas curriculares e a disciplina de Religião e Moral Católicas, no ensino primário, tem uma certa carga simbólica, que, de um lado, é susceptível, prima facie, de criar a ideia de que o ensino da Religião e Moral Católicas é um ensino do Estado e, de outro lado, pode originar nos pais um certo temor reverencial que os conduza a inscrever os filhos naquela disciplina, mesmo na ausência de sólidas convicções religiosas. É essa carga simbólica que leva a dizer que a dupla representação (representantente do Estado, enquanto funcionário e professor das disciplinas curriculares, representante da Igreja perante as mesmas pessoas de que é professor, enquanto encarregado por ela do ensino da disciplina de Religião e Moral Católicas) viola os princípios da separação entre as igrejas e o Estado (na sua vertente de separação pessoal), da não confessionalidade do ensino público e da liberdade religiosa.

Estes argumentos parecem irrespondíveis. Não obstante, o acórdão acaba por considerar constitucionais as normas impugnadas, baseando-se em que uma observação mais atenta do sistema da referida portaria leva à conclusão do que o ensino aí regulamentado “é um ensino da responsabilidade da Igreja e não do Estado”, já que “é aquela que propõe a nomeação dos professores da disciplina de Religião e Moral Católicas, mesmo no caso do professor primário (professor da turma), e aprova os programas e os manuais”.

É manifesta a fragilidade de tal conclusão.

Efectivamente, ela parte da premissa – errada – de que o princípio de separação só funciona num sentido: ou seja, no sentido de preservar a Igreja de interferências do Estado. Para a tese vencedora, pouco importa que seja o Estado a pagar o ensino religioso na escola pública, a oficializar e publicar os programas da responsabilidade do episcopado, a formar os professores indicados pela Igreja, a cometer o ensino religioso a funcionários públicos; basta que seja assegurada a autonomia da igreja face ao Estado.

Ora, se o princípio da separação há-de funcionar nesse sentido, a verdade é que ele também não pode deixar de funcionar no sentido inverso: se não cabe ao Estado intrometer-se nas questões da competência da hierarquia eclesiástica, também lhe não cabe ensinar catequese. Não é legítimo impor que a Igreja actue em conformidade com as conveniências do Estado nem, ao invés, admitir que ela fale pela boca deste. O professor primário não pode, por isso, nem ser entendido como o contraponto do pároco – como o seria numa visão conflitual do princípio da separação – nem, tão-pouco, como um seu prolongamento; a atitude do professor, em matéria religiosa, tal como a de qualquer outro agente público no exercício das suas funções, tem de ser a da absoluta neutralidade.

Como afirma Francesco Margiotta Broglio (Laïcité des Etats et liberté des Eglises dans l’Europe des Douze, in Conscience et Liberté, nº 32, 1986, págs. 15 e segs.), “a lenta e dramática história da laicização do Estado na Europa tem ainda hoje de se defrontar com dois poderes: as autoridades e estruturas confessionais que, para preservarem os seus dogmas e salvaguardarem a unidade das suas igrejas, recorreram – sobretudo, através do sistema concordatário – ao braço secular, aos seus juízes, à sua polícia; mas também as autoridades e regimes políticos que pretenderam e pretendem ainda encarnar uma religião que denominam de Estado, para a submeterem e melhor dominarem as consciências”. Ora, o acórdão só se preocupa com a segunda questão, ignorando totalmente a primeira.

Uma visão actual do princípio da separação – baseada na colaboração e não no conflito entre Estado e igrejas – implica, pois, que se garanta a autonomia e a independência de ambas as partes. Nem a Igreja se há-de subordinar ao Estado – como aconteceu no passado – nem o Estado se há-de subordinar à Igreja. E isto, tanto no plano das realidades, como no plano das aparências: o Estado, tal como não se pode assumir como ateu ou agnóstico nem confundir-se com uma confissão religiosa, também não pode parecer que toma qualquer destas atitudes, porque isso significa, só por si, uma quebra da sua obrigatória neutralidade na matéria, o que briga, desde logo, com as convicções dos cidadãos; e isto, sem nunca esquecer que a liberdade religiosa tanto contempla a liberdade de professar certa religião, como a liberdade de não professar qualquer religião (numa perspectiva comparatística, cfr. Jacques Robert, Libertés Publiques et Droits de l’Homme, 4ª ed., com a colaboração de J. Duffar, págs. 409 e segs.; A. Freiherr von Campenhausen, Religionsfreiheit, em Isensee/Krichhof, ob. col., Handbuch des Staatsrechts, vol. VI, Freiheitsrecht, págs. 372 e segs. e 390 e segs; Carlo Cardia, Stato Laico, in Enciclopedia del Diritto, vol. XLIII, págs. 875 e segs).

A circunstância de não ser o Estado a designar o professor da turma para ministrar a disciplina de Religião e Moral Católicas não tem, pois, o condão de salvar a constitucionalidade da solução. Ao permitir que o professor do ensino básico do primeiro grau concentre em si a dupla representação do Estado e de uma Igreja, a portaria é irremissivelmente inconstitucional, porque inconstitucional é a possibilidade – apontada como regra, visto constituir a primeira opção contida no nº 14º da Portaria nº 333/86 – de o professor único de todos os alunos nas disciplinas não confessionais acumular ainda a leccionação de uma disciplina confessional. Com efeito, existe aqui inequívoco ensino religioso directo, já que tal ensino, embora seguindo a cartilha da Igreja, é ministrado pela boca do professor, isto é, do Estado.

A dupla representação, para além de, in casu, significar a assunção pelo Estado do ensino religioso directo, ainda propicia a confessionalização do ensino público através do ensino religioso difuso. E não se podem acolher as considerações feitas sobre a não violação do princípio da não confessionalidade do ensino público, ou da própria liberdade religiosa, procurando relegar-se para situações anómalas ou abusivas, ligadas à personalidade do concreto professor de turma, os casos em que este, ao leccionar também a disciplina de Religião e Moral Católicas, vem a adoptar um ensino religioso difuso nas outras disciplinas ou assume atitudes discriminatórias face aos alunos que não frequentam o ensino confessional. Os princípios da não confessionalidade e da separação proíbem precisamente a dupla representação, desde logo, como forma preventiva, para que não surjam tais situações anómalas ou abusivas. Para a posição que fez maioria sempre seria incompreensível, em situação que parece ter certa analogia, uma norma como a do artigo 2194º do Código Civil – a qual estabelece a nulidade das disposições testamentárias a favor, entre outros, do sacerdote que prestar assistência espiritual ao testador – pois que tudo se resumiria a situações anómalas ou abusivas que não careceriam de uma norma geral proibitiva, bastando sancionar tais abusos casuisticamente. Quer dizer, a tese que fez vencimento, em vez de se preocupar com a diminuição do risco de influências indevidas, preconiza uma solução que aumenta tal risco. Por último, sempre há-de convir-se que a alusão ao caso alegadamente paralelo de o professor ser um ateu convicto ou um anticlerical só teria sentido se este último professor tivesse – por absurdo – a seu cargo a leccionação de aulas de ateísmo ou de agnosticismo e se se pusesse o problema de haver alunos que aí se inscrevessem e outros que o não fizessem.

Como escreveu o Conselheiro Vital Moreira, em declaração de voto anexa ao Acórdão nº 423/87:

[…] não pode haver agentes do Estado cuja nomeação fica dependente de proposta (exclusiva) de uma igreja; não pode haver agentes de uma igreja dependentes de nomeação do Estado. Não se pode ser ao mesmo tempo agente da Igreja e agente do Estado. Esta acumulação de dependências constitui uma violação qualificada do princípio da separação.”

Por isso, não se compreende a alusão do acórdão a entendimentos rigoristas e não rigoristas do princípio da separação, visto que a dupla representação está sempre proibida por qualquer entendimento desse princípio.

Para contrariar este ponto de vista acabado de exprimir, afirma resolutamente o acórdão que o princípio da separação das igrejas do Estado não é incompatível com o princípio da dupla representação, visto que, de outro modo, o sacerdote católico não poderia oficiar um casamento (católico) a que a lei reconhece efeitos civis. Mas é evidente que tal argumento é totalmente irrelevante para a solução acolhida nos nºs 2º e 14º da Portaria nº 333/86, como se passará a demonstrar.

Na verdade, desde logo, como se reconhece no acórdão, é a própria Constituição que estabelece que a lei “regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração” (art. 36º, nº 2). Quer dizer, o legislador constituinte teve presente a vigência do artigo XXII da Concordata – norma através da qual o Estado Português reconhece efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade com as leis canónicas, desde que a acta do casamento seja transcrita nos competentes registos do estado civil – explicitando expressamente que “admite formas de celebração diferentes”, isto é, “diferentes formas de celebração do casamento – incluindo as formas religiosas, na medida em que sejam admitidas pela lei ou por convenção internacional, e que não sejam incompatíveis com o princípio da separação Estado-igrejas (arts. 41º – 3 e 290º/ c))” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2ª ed., pág. 230).

Mas, para além disso, tal abertura constitucional não significa que o sacerdote católico reúna em si também a qualidade de funcionário do registo civil e exerça, portanto, uma dupla representação do Estado e da Igreja Católica. Basta ler os arts. XXII e XXIII da Concordata para ver que assim não é, pois que o sacerdote apenas colabora com os serviços de registo civil, cabendo a estes a transcrição e, mesmo, a recusa de transcrição do casamento canónico (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado vol. IV, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra, 1992, págs. 49 e segs., 221 e segs., com referência ao regime do Código Civil e do Código de Registo Civil).

De todo o modo, é óbvio que a atribuição de efeitos civis aos casamentos canónicos resulta da Constituição, pelo que não pode servir de lugar paralelo para casos em que a Constituição diz exactamente o contrário!

Assinale-se ainda, em termos de Direito Comparado, que também na Alemanha é admitido o ensino religioso nas escolas públicas. Só que aí, ao contrário do que acontece entre nós, tal possibilidade se encontra, desde logo, expressamente prevista na Constituição; e a isto acresce que, por um lado, é válida para as diversas confissões religiosas e, por outro lado, não tem aplicação nas escolas não-confessionais (cfr. artigo 7º, 3, da Constituição alemã), o que, em todo o caso, faz preservar a liberdade de consciência e de religião e o princípio da igualdade. Por outro lado, e com carácter mais geral, a jurisprudência alemã vem entendendo que o dever de neutralidade estatal impede, mesmo, que os ministros de qualquer religião ou culto, quando, a título profissional, exerçam funções públicas – e, designadamente, a de professor – usem as vestes talares, quando no exercício dessas funções públicas; surpreende-se, aqui, uma preocupação quanto à neutralidade do Estado, em matéria religiosa, a que o acórdão se manifestou completamente insensível (cfr. Thomas Oppermann, Schule und berufliche Ausbildung, em Irensee/Kirchhof, ob. cit., vol. VI, págs. 346 e segs.; A. Freiherr von Campanhausen, est. cit.; Christian Autexier, Les Manifestations d’Appartenance Religieuse dans les Etablissements d’Enseignement Scolaire Allemands, in Revue Française de Droit Administratif, ano 7, 1991, nº 1, págs. 58 e segs.; Francesco Margiotta Broglio, est. cit.).

6. No acórdão, analisa-se com detalhe a norma do nº 11º da Portaria nº 333/86, formulando-se aí a dúvida sobre se não será inconstitucional a imposição de actividades escolares ou extra-escolares alternativas aos alunos não matriculados na disciplina de Religião e Moral Católicas, dando-se conta da orientação recente do Tribunal Constitucional italiano sobre a ilegitimidade constitucional de tal imposição (stato di non obbligo), mas acabando-se por repudiar essa orientação no que toca ao caso português, relativamente ao primeiro ciclo do ensino básico.

Preliminarmente, notar-se-á que a situação constitucional italiana é profundamente diversa da portuguesa. De facto, o artigo 7º da Constituição italiana de 1947 estatui que “o Estado e a Igreja Católica são, cada um na sua própria ordem, independentes e soberanos. As suas relações são reguladas pelos Pactos de Latrão. As modificações dos Pactos, aceites pelas duas partes, não requerem o processo de revisão constitucional”. Ora, até 1984, havia que ter em conta que o Pacto de Latrão de 1929, que dava execução à Concordata de 1929, reafirmava solenemente o princípio de que a religião católica era “a única religião do Estado”. A partir da assinatura em Villa Madama do Acordo de Modificação da Concordata de Latrão, em 18 de Fevereiro de 1984, o Estado italiano comprometeu-se a assumir o ensino da religião católica nas escolas públicas, “atendendo a que os princípios do atolicismo fazem parte do património histórico do povo italiano” (artigo 9º, nº 2, § 1º; cfr. Sergio Lariscia, Stato e Chiesa Cattolica (Rapporti tra), in Enciclopedia del Diritto, vol. XLIII, págs. 905 e segs.; G. Dalla Torre, Il Fattore Religioso nella Costituzione, págs. 95 e segs.). Ao invés, no caso português – como foi acentuado no Acórdão nº 423/87 do Tribunal Constitucional – a Constituição não dá qualquer relevância especial à situação da Igreja Católica face às outras confissões religiosas, nem faz qualquer referência à Concordata de 1940, tendo de entender-se que as normas desta têm de ser aferidas pelas normas e princípios constitucionais vigentes, o que pode implicar – e implica, iniludivelmente – a inconstitucionalidade superveniente de muitas delas.

Ora, tendo em conta o nosso enquadramento constitucional, sempre se deveria concluir que o princípio da separação proíbe o Estado de assumir funções próprias das confissões religiosas, não podendo ministrar o ensino de qualquer credo religioso, incluindo o católico apostólico romano. Nessa medida, o ensino da religião nas escolas públicas só seria constitucionalmente legítimo enquanto assegurado pela confissão religiosa em causa e, consequentemente, não se poderia admitir que os alunos que o não pretendessem seguir fossem compelidos a actividades alternativas, já que o ensino pela confissão religiosa deveria ser sempre ministrado fora do horário escolar, isto é, teria o carácter de actividade extra-escolar. Daí decorreria, como é óbvio, que não seria, desde logo, constitucionalmente aceitável a solução constante do nº 2º da Portaria – na referência ao “tempo lectivo mais adequado”.

Seja como for, e ainda que se aceitasse que a disciplina em causa fizesse parte do currículo escolar, a verdade é que, como decorre do Acórdão nº 423/87 – e, agora, é esquecido – o ensino ministrado por qualquer confissão religiosa tem de ter carácter facultativo, não podendo ser posto à disposição dos alunos para estes ou os seus encarregados de educação optarem entre esse ensino e disciplinas ou actividades alternativas. Quer dizer, trata-se de ensino facultativo e não de ensino optativo ou opcional.

Consequentemente, não há que argumentar com a “tenra idade” dos alunos para justificar a solução constante do nº 11º da portaria. A compatibilização dos interesses em causa nunca poderia ser feita à custa do sacrifício de valores como os da liberdade religiosa e da igualdade, este violentamente atingido quando, de forma verdadeiramente aberrante, se admite que os pais que não querem que os seus filhos recebam educação religiosa sejam obrigados a tomar conta deles, em pleno horário escolar!

Nessa medida, o referido nº 11º sempre se há-de ter por materialmente inconstitucional, devendo acolher-se nesta sede as razões postas em relevo sobre o sentido da facultatividade do ensino confessional por aquela citada jurisprudência italiana (cfr. G.G. Florida e S. Sicardi, Dall’ Eguaglianza dei Citadini alla Laicitá dello Stato, in Giurisprudenza Costituzionale, ano XXXIV, 1989, Fasc. 6, págs. 1109 e segs.).

Aliás, afigura-se pelo menos estranho que uma solução tida por inconstitucional no ordenamento jurídico italiano, apesar das ressalvas constitucionais ali existentes e de que se deu acima conta, possa ser tranquilamente tida como “um requisito indispensável de garantia da liberdade religiosa”, face ao ordenamento jurídico português, onde, como já se assinalou, a Constituição é totalmente omissa relativamente à religião católica e relativamente à Concordata.

8. Acrescente-se ainda que, no acórdão, se tecem largas considerações sobre a liberdade de religião, enquanto direito fundamental das pessoas, pondo-se em destaque as dimensões positiva e negativa de tal liberdade. E, a este propósito, afirma-se que o Estado só respeita a liberdade religiosa se criar as condições para que os cidadãos crentes possam observar os seus deveres religiosos, isto é, se agir por acção e não por mera omissão.

Simplesmente do acolhimento desta doutrina não pode retirar-se a conclusão de que o Estado se acha constitucionalmente obrigado a organizar aulas de religião nas escolas públicas. O Estado também garante a liberdade de expressão do pensamento (artigo 37º, nº 1, da Constituição) e tal não significa, na dimensão positiva desta liberdade, que o Estado haja de fundar e manter meios de comunicação social ou construir e conservar recintos públicos para permitir a todos os interessados o exercício dessa liberdade. E o mesmo se poderá dizer da liberdade de consciência, pois é manifesto que o Estado não está obrigado a organizar na escola pública cursos de ateísmo ou de agnosticismo para os eventuais interessados.

Deve ainda notar-se que o próprio acórdão entra em contradição consigo próprio, já que, depois de sustentar que o Estado está constitucionalmente obrigado a organizar aulas de Religião e Moral Católicas para colaborar com os pais que pretendam que os filhos as frequentem – e daí, decisivamente arrancar para a conclusão da legitimidade do nº 1º da Portaria nº 333/86 – acaba por afirmar que tanto faz que se sustente que os pais têm um direito, face ao Estado, de exigir que este proporcione nas escolas públicas o ensino da Religião e Moral Católicas, como que se sustente que nesse dever do Estado “vai tão-só implicada a possibilidade” de este “criar as condições para que a Igreja Católica ministre, nessas escolas, um tal ensino”.

Ora, mais adiante, o acórdão vem expressamente fundar a não violação do princípio da igualdade na circunstância de o Estado, ao editar a Portaria nº 333/86, apenas ter dado “cumprimento a um dever que sobre ele impende”, retomando tese já sustentada no Acórdão nº 423/87.

Cabe então perguntar : como justificarão a não violação do princípio da igualdade aqueles que entendem que o dever, afinal, não é bem dever, mas tão-só possibilidade?

Com efeito, diferentemente do que sucede nos 2º e 3º ciclos do ensino básico e no ensino secundário, em que, actualmente e no plano de jure, se admite a leccionacção, em regime de frequência facultativa, de aulas de formação religiosa das diversas confissões religiosas com implantação em Portugal (Despacho Normativo nº 104/89 do Ministro da Educação, in Diário da República, I Série, de 16 de Novembro de 1989), no primeiro ciclo do ensino básico só é permitida nas escolas públicas a leccionação da Religião e Moral Católicas, sendo certo que o sistema da Portaria nº 333/86 está, ele próprio, pensado para
contemplar necessariamente uma única confissão religiosa.

No acórdão, afirma-se que o facto de “o Estado dever observar quanto às igrejas uma regra de separação e, quanto ao ensino público, uma postura de a-confessionalidade não significa que ele não possa – e deva – colaborar com as igrejas na ministração do ensino religioso nas escolas públicas”. Logo, porém, este discurso vem a ser desenvolvido para uma única confissão religiosa, para uma única Igreja, descurando todas as outras confissões professadas no País e desconhecendo as legítimas pretensões destas.

Bastará atentar nos seguintes passos do acórdão:
ultrapassada, no nosso país, a fase em que a separação entre o Estado e a Igreja significou um viver de costas voltadas neste contexto, há-de incumbir ao Estado o “dever” de proporcionar à Igreja Católica o ensino da disciplina da Religião e Moral Católicas, nas escolas primárias, aos alunos

Nesta matéria, a doutrina do acórdão acha-se próxima da regulamentação do Decreto-Lei nº 323/83, sem atentar na interpretação conforme à Constituição das normas não inconstitucionalizadas deste último, operada pelo citado acórdão nº 423/87, nem pela publicação do subsequente Despacho Normativo nº 104/89, acima referido.

De todo o modo, uma coisa é certa: o regime da portaria em apreço só se aplica à religião católica.

No acórdão retoma-se a ideia de que a Portaria nº 333/86 não viola o princípio da igualdade, já que a circunstância de outras confissões religiosas não terem a possibilidade de ministrar aulas no primeiro grau do ensino básico apenas poderá gerar uma inconstitucionalidade por omissão.

Discorda-se frontalmente de tal posição.

Em primeiro lugar, porque ela assenta, necessariamente, na ideia de que o Estado tem o dever de propiciar o ensino religioso (só pode haver omissão inconstitucional, obviamente, onde houver um dever de legislar), ideia que os signatários rejeitam e que, como vimos, o acórdão, de forma sinuosa, ora defende estrenuamente, ora põe em dúvida.

Em segundo lugar, porque ainda que tal dever existisse, sempre o Tribunal haveria de declarar a inconstitucionalidade da norma do nº 1º, na parte em que exclui do regime ali previsto as restantes confissões religiosas. Caso contrário, por absurdo, poder-se-ia dizer – na linha desta argumentação do acórdão – que a norma legal que só concedesse pensões de velhice e invalidez às pessoas de certa raça não seria inconstitucional, por violação dos arts. 13º e 63º, nº 5, da Lei Fundamental, porque, quanto às pessoas de outras raças, haveria apenas uma inconstitucionalidade por omissão.

Daí que tenha de reconhecer-se como espantosa a solução sustentada pela tese maioritária.

Como escreveu o Conselheiro Vital Moreira, na sua já citada declaração de voto, “a inconstitucionalidade está, pois, não no facto de as demais confissões não gozarem de tais facilidades, mas sim no facto de a Igreja Católica gozar delas em exclusivo. A inconstitucionalidade está, portanto, directamente, no próprio diploma em apreço, que consagra o monopólio da Igreja Católica, e não na falta de idênticas facilidades legais para as demais igrejas.”

Acresce, ainda, que a admissão da possibilidade de que o professor único de todos os alunos possa ser o professor só de alguns em matéria de religião e moral católicas é potencialmente geradora de discriminação entre os alunos, consoante os seus pais hajam optado pela frequência ou não desta disciplina (cfr. Nicola Pagano, Religione e Libertá nella Scuola, Turim, 1990, págs. 83 e segs., referindo-se às soluções acolhidas no nova Concordata de 18 de Fevereiro de 1984 entre a Itália e a Santa Sé, criticando os regimes discriminatórios aí acolhidos, bem como na legislação de execução dessa Concordata).

Uma tal discriminação é particularmente visível quando se atenta no regime fixado pelo nº 11º da portaria em apreço, onde não só se prevê um tratamento injustificadamente diferenciado entre os alunos que optam pela disciplina e os restantes alunos, mas também se impõem encargos acrescidos aos pais ou encarregados de educação cujos educandos a não frequentem.

Já atrás se chamou a atenção para que não constitui argumento válido, no plano de fiscalização da constitucionalidade, a invocação de que a religião católica é largamente maioritária em Portugal e, por isso, goza de acrescida representatividade, justificadora de eventuais privilégios. Como reforço, assinale-se que em situação fáctica não menos dominante da Igreja Católica, na República da Irlanda, muito embora o ensino integrado da educação secular e religiosa na escola pública primária seja aceite, a verdade é que o ensino religioso pode ser, pelo menos, católico romano, protestante e judaico (cfr. Desmond M. Clarke, Freedom of Thought in Schools: A Comparative Study, in International and Comparative Law Quarterly, vol. 35, 2, Abril de 1986, págs. 293-295).

Existe, assim, manifesta violação do princípio da igualdade pelas normas impugnadas da Portaria nº 333/86.

Por todas estas razões, impõe-se a conclusão de que os nºs. 1º, 2º, 11º, 14º e 23º da Portaria nº 333/86 são materialmente inconstitucionais, por violação dos arts. 13º, 41º, nº 4, e 43º, nº 3, da Constituição.

II – PORTARIA Nº 831/87

9. Conforme se refere no acórdão, a Portaria nº 831/87 invoca como norma habilitadora o art. 6º do Decreto-Lei nº 323/86, do seguinte teor:

O ensino da Religião e Moral Católicas será igualmente assegurado, com a índole apropriada, nos termos do presente diploma, nas actuais escolas do magistério e nas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico, com o carácter de disciplina facultativa dirigida à natureza das respectivas funções”.

Preliminarmente, deixar-se-á acentuado que a Portaria nº 831/87 visa confessadamente dar execução ao artigo 6º do mencionado Decreto-Lei 323/83. Importa, todavia, notar que este artigo 6º previa a ministração do ensino nas “actuais escolas de magistério e nas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico, com o carácter de disciplina facultativa dirigida à natureza das respectivas funções”.

Ora, tendo sido extintas as escolas de magistério, e tendo sido alterada a natureza das escolas de formação de docentes destinados aos quadros da educação pré-escolar, é pertinente a pergunta sobre se o artigo 47º, nº 3, da Lei de Bases do Sistema Educativo, onde se prevê “o ensino da moral e da religião católica, a título facultativo”, apenas nos “planos curriculares dos ensinos básico e secundário” não revogou o artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83.

De facto, atendendo a que a Concordata de 1940 previa que seria ministrado o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias (artigo XXI) – e parece indiscutível que nessa altura as escolas de magistério primário eram escolas médias a que se acedia com a aprovação no segundo ciclo liceal, em idade em que os estudantes, em regra, eram menores – não pode deixar de se considerar que a transformação dessas mesmas escolas de magistério em departamentos de ensino integrados no ensino superior há-de ter tido relevantes implicações na regulamentação mais recente. Parece, por isso, no mínimo simplista sustentar que o artigo 47º, nº 3, não implicou a revogação daquele artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83, por existir uma relação entre ambos de lei geral-lei especial.

Acrescente-se que o acórdão vai mesmo mais longe e afirma que o artigo XXI da Concordata preveria o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas referidas no citado artigo 6º e na Portaria nº 831/87. Tal afirmação não se acha demonstrada, desconhece a radical diferença de natureza entre o antigo ensino médio previsto na Concordata (em que se inseriam as escolas de magistério na década de quarenta) e o ensino superior (universitário ou não universitário) a que se dirige a referida Portaria nº 831/87 – basta pensar na profunda diferença dos estudantes do ensino médio então contemplados, relativamente aos actuais estudantes de ensino superior, quanto à idade e às habilitações literárias respectivas – e só pode ficar a dever-se a um excesso de zelo, para inculcar que o regime da portaria constitui, mesmo, uma exigência resultante de convenção internacional. A Concordata há-de ter-se, pois, por irrelevante nesta matéria, visto que o artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 – e a Portaria nº 831/87 – lhe são posteriores e pretenderam ir mais longe do que a solução concordatária.

10. Igualmente duvidosa se afigura a questão de saber se o nº 2 da Portaria nº 831/87 não viola o artigo 47º, nº 6, da Lei de Bases do Sistema Educativo, o qual, ao determinar que “os planos curriculares do ensino superior respeitam a cada uma das instituições de ensino que ministram os respectivos cursos”, teria revogado o artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83.

Seja, porém, como for, a verdade é que o ponto não carece de ser dilucidado em definitivo, uma vez que os signatários consideram que a Portaria nº 831/87, através das suas normas substantivas, viola os arts. 13º, 41º, nº 4, e 43º, nº 3, da Constituição.

É o que passarão a demonstrar.

11. Na verdade, a instituição da disciplina de Educação Moral e Religiosa e Sua Didáctica nas escolas superiores de educação e nos centros integrados de formação de professores das universidades, destinada aos educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico, por força das razões já aduzidas anteriormente a propósito da Portaria nº 333/86 sempre deveria ser declarada materialmente inconstitucional, por afrontar os princípios da separação do Estado e das igrejas, da não confessionalidade do ensino público e da igualdade.

Na verdade, e como se salienta na parte do requerimento dos Deputados que aborda esta matéria, os números 1º e 9º articulam-se com o regime que prevê que a disciplina de religião e moral no ensino primário possa ser assumida pelos próprios professores da escola, e representam, também, a realização por parte do Estado de uma tarefa que não lhe pertence, concretamente a tarefa de conceder formação religiosa àqueles que ministram o ensino da religião, a qual apenas poderá ser exercida pelas próprias confissões religiosas.

Do mesmo modo e por prever a existência desta disciplina apenas para a Igreja Católica, os nºs 1º, 2º e 3º da Portaria violam o princípio constitucional da igualdade, nos termos já expostos antes, não sendo possível encontrar no artigo XXI da Concordata de 1940 o fundamento para a constitucionalidade daqueles preceitos, sendo aplicáveis aqui as considerações feitas a propósito da antecedente portaria.

12. No acórdão, chega-se ao ponto de afirmar que “o fundamento constitucional das normas da Portaria nº 831/87, em especial das normas dos seus nºs 1º e 2º, pode ainda ir buscar-se ao artigo 67º, nº 2, alínea c), da Lei Fundamental, que estabelece o «dever» do Estado de cooperar com os pais na educação dos filhos”.

A razão deste argumento é clara: como vimos, sem dever não há inconstitucionalidade por omissão; e sem inconstitucionalidade por omissão seria ainda mais escandaloso não reconhecer a existência de uma inconstitucionalidade por acção, tendo em conta o regime de privilégio que se estabelece.

Não pode, pois, deixar de se acentuar o artificiosismo da invocação da referida norma constitucional para legitimar aquelas disposições regulamentares.

Não se admite que o Estado ainda possa estar a colaborar com os pais na educação dos filhos, ao organizar uma disciplina ministrada a adultos nas escolas de formação dos futuros professores e destinada a permitir que tais professores venham no futuro a ser escolhidos pelas autoridades eclesiásticas para ministrarem aulas de Religião e Moral Católicas aos seus alunos. Atribui-se uma extensão à previsão daquele preceito constitucional que o mesmo não comporta e que teria como consequência, em última análise, o dever de o Estado criar e suportar seminários, já que a educação religiosa dos menores não é seguramente possível se não houver sacerdotes.

Ora, como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o Estado deve limitar-se a cooperar com os pais no desempenho da missão destes de educarem, socializando e
aculturando, os filhos. Tal colaboração do Estado realiza-se, primacialmente, através do desempenho das obrigações tendentes a assegurar o direito ao ensino (artigo 74º da Constituição). A não confessionalidade do ensino (artigo 43º, nº 3 da Constituição) impede, por isso, que o Estado vá formar professores de Religião e Moral Católicas entre os estudantes que frequentam as escolas superiores de educação e os centros integrados de formação de professores das universidades que formarem educadores de infância e professores do ensino básico.

Neste contexto, a invocação no acórdão da sentença do Tribunal Constitucional espanhol nº 187/1991 é abusiva, porque não se refere que a Constituição espanhola – diferentemente da portuguesa – faz uma especial referência à Igreja Católica, estabelecendo que “os poderes públicos garantem o direito que assiste aos pais para que seus filhos recebam a formação religiosa e moral que está de acordo com as suas próprias convicções” (artigo 27º, nº 3), discutindo-se nessa decisão se o princípio constitucional da autonomia universitária “garantida nos termos da lei” resulta vulnerado pelo Acordo de 3 de Janeiro de 1979 entre o Estado espanhol e a Santa Sé, acordo que previu a existência de uma disciplina deste tipo nas escolas superiores de formação de professores.

Importa, por último, acentuar que há uma alteração evidente entre a disciplina do artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83 e a que resulta do nº 2º da Portaria nº 831/87. No primeiro diploma, a norma em causa previa a existência nas escolas aí indicadas – e que não integravam o ensino superior – do ensino de Religião e Moral Católicas com o carácter de disciplina facultativa, enquanto no segundo diploma a disciplina passa a ser optativa, isto é, constitui não algo que acresce ao currículo, sem alternativas, mas uma entre várias opções, deixadas à escolha do aluno.

Nessa medida e sem sequer aludir a outras razões, sempre haveria de entender-se que a organização das próprias disciplinas opcionais ou optativas (uma das quais é a disciplina de Educação Moral e Religião Católica e sua Didáctica) deixou de caber às entidades competentes, segundo o preceituado no artigo 47º, nº 6, da Lei nº 46/86. Ora, cumpre mencionar a importância desta questão, já que implica escolhas entre várias disciplinas e influencia as classificações de curso, sendo certo que essas classificações são relevantes, para além do mais, em termos de futuro profissional dos interessados.

Quer dizer, se o raciocínio feito no acórdão já claudicava quanto a uma disciplina meramente facultativa (tal como se achava prevista no artigo 6º do Decreto-Lei nº 323/83),
a verdade é que tal raciocínio se torna totalmente inaceitável quando a disciplina em causa é transformada em opcional (isto é, apresenta-se como uma de várias opções à escolha do aluno).

Aliás, no caso de se tratar de instituições universitárias, tal solução parece violar directamente o princípio da autonomia universitária (artigo 76º, nº 2, da Constituição), até porque consta apenas de regulamento, sem ter cobertura legal.

III – CONCLUSÃO

13. Na declaração de voto aposta ao acórdão nº 423/87, o Conselheiro Vital Moreira declarava não querer subestimar a importância de três pontos essenciais desse acórdão, não obstante as generalizadas críticas que aí lhe fizera:

Que o princípio da separação proíbe o Estado de desempenhar funções próprias das igrejas, designadamente de assumir quaisquer tarefas ou funções de formação religiosa, e que o ensino da religião nas escolas públicas só é lícito quando seja inteiramente função e responsabilidade das respectivas confissões;

Que não existe nenhum dever de frequência das aulas de religião de nenhuma confissão, sendo ilícita a exigência de uma declaração expressa de escusa para quem não queira o ensino de determinada religião;

Que não pode haver discriminação entre as várias igrejas na possibilidade de acesso à escola pública para ensinarem a respectiva religião a quem o deseja, não sendo lícitas senão as diferenças de tratamento que decorram da diversa “procura” do ensino de cada uma.

O presente acórdão constitui, claramente, um retrocesso face ao Acórdão nº 423/87, achando-se postos em causa seguramente os pontos primeiro e terceiro acima indicados – o segundo não estava em causa -, não obstante uma aparente continuidade de doutrina entre ambos.

Ao considerar conformes à Constituição soluções tão gravosas como a da admissão da possibilidade de o professor único da turma assegurar o ensino confessional, a da imposição de alternativas para os alunos não matriculados na disciplina confessional e a da leccionacção de uma disciplina confessional no ensino superior, o presente acórdão acolheu uma nova interpretação de normas e princípios da Constituição, nomeadamente dos princípios da separação das igrejas do Estado e da não confessionalidade do ensino, que se afasta significativamente da interpretação fixada em 1987.

Em suma, o acórdão ora tirado, sob uma forçada e, como se demonstrou, claudicante aparência de continuidade face à jurisprudência firmada no Acórdão nº 423/87, o que verdadeiramente faz é uma releitura desse aresto, o que, sendo em si mesmo censurável pelas razões aduzidas, é passível do ainda mais severo juízo negativo que exprimimos na presente declaração de voto porque, em direitas contas, acaba por ir bem mais longe, sendo uma irrefutável evidência que o que no fundo se almeja é proceder a uma verdadeira releitura – essa, sim, de todo inadmissível – da própria Constituição da República Portuguesa, em matéria, aliás, abrangida pelos limites materiais de revisão constitucional, já que a separação das Igrejas do Estado consta da alínea c) do artigo 288º da Lei Fundamental.

António Vitorino
Luís Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes

Processo nº. 322/88
DECLARAÇÃO DE VOTO

1. Votei vencido por entender que as normas dos artigos 2º, 11º e 14º da Portaria nº 333/86 e todas as normas da Portaria nº. 831/87 são material e formalmente inconstitucionais. Como as portarias são regulamentos de execução (alínea c) do artigo 202º da Constituição), a sua inconstitucionalidade material implica sempre a formal, dado que uma autorização de regulamentar só é válida na medida em que é conforme à Constituição. Dispensar-me-ei, por isso, de acrescentar outros argumentos pertinentes a favor da inconstitucionalidade formal, tanto mais que foram aduzidos noutros votos de vencido. Abrirei uma excepção com um argumento pela inconstitucionalidade formal da Portaria nº. 831/87, a que dou uma formulação mais radical do que a de outros votos de vencido.

I – A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ARTIGOS 2º, 11º E 14º DA PORTARIA Nº. 333/86.

A) A violação dos princípios da separação do Estado das igrejas e outras comunidades religiosas e da não confessionalidade do ensino público.

2. O princípio da separação do Estado das igrejas e outras comunidades religiosas está concebido na Constituição como um direito fundamental, mais exactamente, como um dos elementos da liberdade de religião. O nº. 3 do artigo 41º, ao dispor que “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado, são livres na sua organização e no exercício das suas funções e de culto”, atribui um direito às igrejas e outras comunidades religiosas como, primeiro, um direito à separação, isto é, especialmente à não intervenção do Estado na esfera religiosa; segundo, um direito à liberdade na sua organização, isto é, à autonomia organizativa; terceiro, um direito ao livre exercício das suas funções e do culto. O direito à separação é, assim, a outra face dos direitos à autonomia e à
liberdade de cada igreja ou comunidade religiosa, mas é ao mesmo tempo mais do que isso: a separação é afirmada relativamente às igrejas e outras comunidades religiosas como um conjunto, quer dizer, o Estado não está apenas obrigado, como, por exemplo, cada igreja ou comunidade religiosa relativamente às outras, a não interferir em cada uma delas, está mais geralmente obrigado a manter-se separado dessa esfera societária. Isto é confirmado pelo nº 2 do artigo 43º na parte em que dispõe que “o Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação, cultura segundo quaisquer directrizes … religiosas” e pelo nº 3 do mesmo artigo quando dispõe que “o ensino público não será confessional”. A primeira destas disposições consagra o princípio da neutralidade religiosa do Estado no domínio da educação e da cultura, que é um corolário de um dos elementos constitutivos ou dimensões do princípio da separação, o princípio da neutralidade religiosa do Estado. A segunda consagra o princípio da não confessionalidade do ensino público, que é um corolário do princípio da separação, em todas as suas dimensões, no domínio do ensino público.

Este entendimento do princípio da separação como direito do homem é o resultado de uma complexa evolução histórica da civilização cristã ocidental e da sociedade portuguesa em particular, evolução que é indispensável ter presente para medir o alcance das normas constitucionais. É que alguma separação ou independência do Estado da Igreja sempre foi reconhecida como estruturante da sociedade cristã, mas teve várias interpretações entre si incompatíveis que se foram sucedendo polemicamente na história, de modo que a adopção de uma delas implica o repúdio das restantes. Vejamos primeiro as interpretações que se devem considerar afastadas pela Constituição:

a) A teocracia. Na bula Una sanctam de 1302, que se supõe ter sido redigida pelo Cardeal portuense Mateus de Acquasparta (Denziger, Hünermann, Enchiridion Symbolorum, 37ª ed., 1991,nº 870-5), o papa Bonifácio VIII pretendeu dar testemunho da verdade evangélica ao declarar que “o poder espiritual tem o poder de instituir o poder terreno e de o julgar se não for bom” (nº 873) e que “é absolutamente necessário para a salvação que toda a criatura humana esteja sujeita (subesse) ao Pontífice Romano” (nº 875). Esta doutrina não é diminuída mas antes completada pelo anterior esclarecimento dado por Bonifácio VIII ao enviado de Filipe IV de França, de que a sujeição ao Papa era devida “em virtude do pecado” (ratione peccati) e de que o poder espiritual e o temporal são poderes distintos ordenados por Deus (“Quadraginta anni sunt, quod Nos sumus experti in iure, et scimus, quod duae sunt potestates ordinatae a Deo”: Denzinger, cit., p.384). Deus ordenou-os, porém, segundo a “Unam sanctam”, de modo a que a autoridade temporal esteja sujeita à espiritual (“temporalem auctoritatem spirituali subjici potestati”, ibid., nº 873), isto é, seja exercida não pela Igreja mas pelo Estado “em favor da Igreja (pro Ecclesiae)”, às ordens do sacerdote (ad nutum et patientiam sacerdotis: ibid).

Foi já esta doutrina, que ainda em 1516 seria reafirmada no 5º Concílio de Latrão (Denzinger, cit., p. 385) que baseou a vassalagem que os primeiros reis de Portugal prestaram ao Papa, e que, por exemplo, Inocêncio IV (na Bula Grandi non immerito, expedida oito dias depois de ter deposto o imperador Frederico II da Alemanha, na última sessão do concílio de Lião – 17 de Julho de 1254 ) aplicou ao entregar o governo do reino ao Conde de Bolonha D. Afonso em vida do seu irmão, o rei D.Sancho II, e novamente João XXI aplicou ao desobrigar os súbditos da obediência ao mesmo D. Afonso III, em 1277 (cfr. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova ed., 1967, I, pp. 85, 186 e 199). Segundo esta interpretação teocrática da separação, a Igreja teria poderes soberanos sobre o Estado. A luta contra o sistema teocrático, que lhe negava a soberania, foi um dos elementos constitutivos do Estado moderno e da sua consciência política. Sem falar no princípio democrático, claramente oposto.

b) O jurisdicionalismo. Nesta concepção há poderes soberanos do Estado sobre a Igreja (jura majestatica circa sacra), a que geralmente correspondem privilégios da Igreja dentro do Estado. Há aqui uma concessão mútua de direitos na própria esfera de jurisdição: por isso se trata de um sistema tipicamente concordatário, embora também existam concordatas nos sistemas teocrático e de separação. Mas no jurisdicionalismo a Igreja serve o Estado como um serviço público e o Estado empresta à Igreja o braço secular, adopta a religião como religião oficial ou, pelo menos, reconhece-a como religião nacional.

A medida de tal estatização de matérias eclesiásticas e do correspondente direito público eclesiástico tem variado historicamente em várias formas de jurisdicionalismo, desde o sistema constantiniano, ao cesaropapismo dos imperadores bizantinos, carolíngios e germânicos, aos sistemas galicano, regalista espanhol, josefinista austríaco e português, e outros, da monarquia absoluta, do bonapartismo, da monarquia liberal aos sistemas concordatórios neo-constantinianos deste século (cfr. Pier Giovanni Caron, Corso ditoria di rapporti fra Stato e Chiesa, 2 vols., 1981, 1985, o qual reserva a palavra jurisdicionalismo para o sistema das monarquias católicas, sem deixar de notar as analogias estruturais de todos estes sistemas). Se exceptuarmos o período da dominância da sempre contestada concepção teocrática, desde a sua primeira grande afirmação prática com a deposição de Henrique IV em 1080, no pico da querela das investiduras até à sua última reafirmação lateranense de 1516, as relações entre a Igreja e o Estado, sempre que acordadas pacificamente, foram norteadas por uma ou outra concepção de jurisdicionalismo, desde o chamado “édito” de Milão de 313, data do primeiro reconhecimento estatal da religião
cristã, até à declaração Dignitatis humanae sobre a liberdade da religião de 1965 do Concílio Vaticano II.

Determinante foi o modelo criado por Constantino. Sabe-se que convocou o primeiro concílio ecuménico, de Niceia – em que teve intervenção decisiva na redacção do Credo -, que tratou os bispos como magistrados imperiais, que superintendeu na disciplina do clero. A Igreja, por seu turno, recebeu o direito romano como seu direito, incluindo o direito público eclesiástico assim criado, segundo o anterior modelo pagão formulado por Ulpiano: “publicum ius in sacris, in sacerdotis, in magistratibus consistit” (D.I, 1, 1 § 2). A Igreja reconhece a Constantino e aos seus sucessores o direito de intervir na escolha dos bispos, e de sancionar as nomeações para os mais altos cargos da Igreja. Embora não fosse considerado sacerdote nem pudesse administrar os sacramentos, o imperador tinha um status eclesiástico. Com excepção do ofício sacramental, tinha todos os outros privilégios de um bispo, sem o ser. Era o defensor da fé e a partir de Teodósio também da ortodoxia, tratando, por consequência, a heresia como crime público. Assim, Justiniano decreta que os cânones dos quatro primeiros concílios são leis do Estado. Significativa é a carta de Ambrósio de Milão ao imperador Graciano, contra a reconstrução do altar pagão de Vitória, reclamada como de justiça por Símaco: “a ninguém se faz injúria, quando contra ele se dá preferência ao Deus omnipotente” (Vejam-se as referências em Burns, ed., Medieval Political Thought, 1988, pp 34, 55, 65, 67, 70-72). Ainda em 1955 Pio XII invocará o exemplo constantiniano para dizer que ” a Igreja não dissimula que em princípio considera esta colaboração [entre a Igreja e o Estado] como normal e que vê como ideal a unidade do povo na verdadeira religião e a unanimidade de acção entre ela e o Estado (Vous avez voulu, Doctrina Pontificia, V, 1960, BAC, p.535).

Várias destas características, embora moderadas, reencontram-se ainda, na história do direito constitucional português, quando prevaleceu o jurisdicionalismo, durante a monarquia liberal e o Estado novo. O regime é substancialmente idêntico sob as três constituições monárquicas. A religião católica é a religião do Estado (Constituição de 1822, artigo 25º, Carta Constitucional de 1826, artigo 6º, Constituição de 1838, artigo 3º). Apenas aos estrangeiros são permitidas outras religiões, mas não o culto público delas, não podendo as casas destinadas ao culto ter a forma exterior de templo (Constituição de 1822, artigo 25º, Carta Constitucional, artigo 6º). O rei, o herdeiro presuntivo (Constituição de 1822, artigos 126º e 135º, Carta, artigos 76º e 79º, Constituição de 1838, artigos 87º e 89º) e os deputados (Constituição de 1822, artigo 78º) juram manter a religião católica. Propagar doutrinas contrárias aos dogmas católicos definidos pela Igreja e fazer proselitismo
para religião diferente são crimes públicos (Código Penal de 1852-1886, artigo 130º, nºs 2 e 3). Compete ao Rei nomear bispos (ou “apresentá-los”, já que dependiam de confirmação papal) e prover os benefícios eclesiásticos (Constituição de 1822, artigo 123º, nº 6, Carta, artigo 75º, § 2º, Constituição de 1838, artigo 82º, nº 4) e ainda conceder ou negar o seu beneplácito aos decretos dos concílios e letras apostólicas e quaisquer outras constituições eclesiásticas, precedendo aprovação das Cortes, se contiverem disposições gerais (Constituição de 1822, artigo 123º, nº 12, Carta, artigo 75º, §14, Constituição de 1838, artigo 81º, nº 12). O patriarca de Lisboa e os arcebispos do continente do reino são membros vitalícios da Câmara dos Pares (Decreto de 30 de Abril de 1826) por direito próprio (artigo 6º, § 2º do Acto Adicional de 1885; artigo 1º do Decreto de 25 de Setembro de 1895; artigo 1º da Carta de Lei de 1896; artigo 1º do Acto Adicional de 1907 ). Os membros do clero secular são pagos pelo orçamento do Estado, por côngruas de colecta obrigatória administradas pelas juntas de paróquia da administração local (de que é presidente o pároco), por rendimentos da Bula da Cruzada, obtidos do pagamento de dispensas religiosas e administrados por uma junta nomeada pelo Ministro da Justiça, etc. Os párocos, a partir de 1890, terão direito a aposentação. Os clérigos têm, portanto, um estatuto semelhante ao do dos funcionários públicos. (cfr. Fortunato de Almeida, ob. cit., III, p 59 ss; Trindade Coelho, Manual Político do Cidadão Português, 2ª ed., 1908., p. 265 ss; Oliveira Marques, Nova História de Portugal, XI, 1991, p. 486 ss). Este regime codifica elementos essenciais do sistema jurisdicional e concordatário da monarquia absoluta e é confirmado ou pressuposto nas concordatas de 1848 e 1859 e em outros acordos com a Santa Sé, nomeadamente os que resolveram os problemas do cisma eclesiástico resultante do exercício concorrente do ius nominandi de bispos pelas duas partes da guerra civil.

A concordata de 1940 retoma a tradição jurisdicionalista. À Igreja é reconhecido não só o poder de ordem, ligado ao culto é à administração dos sacramentos, mas também o poder jurisdicional que ela se arroga (artigo II). É assim que o direito canónico rege os efeitos jurídicos dos casamentos católicos, a que não se aplica o divórcio, e que as causas concernentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado são reservadas à jurisdição da Igreja (artigos XXIV, XXV). O Estado já não tem o tradicional direito de beneplácito, quanto às comunicações da Igreja aos seus fiéis. O antigo ius nominandi dos bispos é reduzido ao direito de consulta prévia e de fazer objecções de carácter político geral antes de a Santa Sé nomear um arcebispo, ou bispo residencial ou um coadjutor cum iure successionis (artigo X), os quais, bem como as restantes autoridades eclesiásticas com jurisdição no País, deverão ser portugueses (artigo IX). Os eclesiásticos são ainda tratados como funcionários públicos nos seguintes casos: no exercício do seu ministério gozam da protecção do Estado nos mesmos termos que as autoridades públicas (artigo XI), o uso do hábito eclesisástico ou religioso quando não permitido pela Igreja é punido com as mesmas penas que o uso abusivo de uniforme próprio de um emprego público (artigo XV), os capelões militares são considerados oficiais graduados (artigo XVIII). A concordata ainda é celebrada “em nome da Santíssima Trindade”, embora o Estado apenas reconheça os “princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais no país”, pelos quais se obriga a orientar “o ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas”. “Consequentemente”, o Estado garante que nas escolas públicas elementares, complementares e médias, salvo pedido de isenção, se ministre o ensino da religião e moral católicas por professores nomeados pelo Estado de acordo com a Igreja e bem assim quanto ao ensino da religião católica nos asilos, orfanatos, estabelecimentos e institutos oficiais de educação de menores e de correcção ou reforma dependentes do Estado, só que aí é também “assegurada a prática dos seus preceitos” (artigo XXI).
Estabelecem-se regimes especiais de isenção de impostos (artigo VIII), de prestação do serviço militar (artigo XIV) e de incompatibilidades relativas ao estado eclesiástico (artigo XIII).

Note-se que já em 1935 (Lei nº 1910) tinha sido eliminada do § 3 do artigo 43º da Constituição de 1933 a frase “o ensino ministrado pelo Estado é independente de qualquer culto religioso, não o devendo porém hostilizar”, passando-se a acrescentar que as virtudes morais visadas pelo ensino ministrado pelo Estado eram “orientadas pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País”. Na revisão constitucional de 1951 (Lei nº 2048) substituem-se, consequentemente com a concordata, os artigos 45º e 46º de 1933, que tratavam sem discriminação das relações do Estado com a Igreja Católica e demais cultos, mantendo o regime de separação, pelo novo artigo 45º, relativo apenas à Igreja Católica, considerada agora como “religião da Nação Portuguesa” (em que reside a soberania – artigo 7º – e que constitui um Estado – artigo 4º) e pelo artigo 46º, sobre as “demais confissões religiosas”. Embora o novo artigo 45º continuasse a dizer que o Estado mantém em relação à Igreja Católica o regime de separação, tratava-se apenas daquela separação implícita no jurisdicionalismo, desde logo no constantianiano, que manteve os cultos pagãos. Aliás, a segunda parte do artigo, ao acrescentar à anterior referência ao regime de separação, a qualificação “com concordatas … em que venham a ser reguladas matérias de interesse comum”, alterava-lhe substancialmente o significado.Finalmente, a revisão de 1971 (Lei nº 3/71) consideraria o Estado responsável perante Deus (artigo 45º) e a anterior religião da Nação passou a ser considerada “religião tradicional da Nação Portuguesa” (artigo 46º).

A concepção jurisdicionalista, na forma que prevaleceu na doutrina católica a partir da contra-reforma e que, por exemplo, Belarmino classicamente defendeu e Leão XIII insistentemente repetiu, baseava-se na doutrina da Igreja como sociedade perfeita, que pode usar dos meios necessários, mesmo coercivos, para alcançar os seus fins, detentora da potestas indirecta do seu poder espiritual sobre o poder temporal do Estado. Ambas as doutrinas violam frontalmente o princípio da soberania do Estado, que detém o monopólio da força e não reconhece poder superior, e a segunda viola também o princípio democrático (cfr., Bockenförde, Schriften zur Staat-Gesellschaft-Kirche, III, 1990, p.117 ss.). É certo que a ideia de uma concordata, como forma de autolimitação do Estado, permite afastar formalmente estas objecções. Só que tal autolimitação não está, como veremos, na lógica do Estado de direito, que é, aliás, a concepção de Estado do Concílio Vaticano II, o qual também abandonou as doutrinas da Igreja como sociedade perfeita detentora de poder indirecto sobre as coisas temporais.

c) A separação. O princípio da separação entre o Estado e a Igreja aparece historicamente ligado à liberdade de religião como direito do homem, na tradição constitucional americana. A declaração de direitos da Virgínia de 1776 estabelece que ” a religião ou a obrigação que devemos ao nosso Criador e a maneira de a cumprir só pode ser dirigida pela razão e pela convicção, não pela força ou violência e por isso todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, de acordo com os ditames da consciência” e o 1º artigo da emenda (de 1791) à Constituição dos Estados Unidos dispõe que “o Congresso não poderá legislar a respeito do estabelecimento de uma religião, ou proibir o livre exercício dela”, o que se entende como um direito civil a respeitar pelos Estados membros, nos termos do 14º artigo da emenda.

Ora, as doutrinas dos direitos do homem em geral, da liberdade de consciência e de religião e da separação do Estado das igrejas foram constantemente condenadas pela Igreja Católica durante o século XIX e parte do século XX. Só com a Pacem in Terris (1963), de João XXIII (abstraindo de uma ocasional evocação dos ” direitos inalienáveis, dados por Deus, que são anteriores ao Estado e que o Estado não pode violar sem prejudicar a sua própria existência “, feita por Pio XII, em 15 de Dezembro de 1944, na alocução When His Excellency, à comissão militar do Congresso americano: Documentos Pontifícios, V, p.203), são acolhidos os direitos do homem e só com a Dignitatis Humanae (1965), do Vaticano II, a liberdade religiosa. A expressão mais célebre da condenação é talvez a Syllabus (1864), de Pio IX, em que, entre outras, se consideram como erradas as seguintes teses: “que a Igreja deva ser separada do Estado e o Estado da Igreja” (55, Denziger, nº 2955); “na nossa época não é mais conveniente que a religião católica tenha o estatuto de única religião do Estado, com exclusão de todos os outros cultos” (77, Denziger, nº 2977); “por isso louvavelmente se providencia pela lei em certas regiões de denominação católica, que seja permitido aos homens para nelas imigrantes que exerçam publicamente o culto próprio de cada um” (78, Denziger, nº 2978). Do mesmo modo é condenada a não confessionalidade do ensino público (45, 47, Denziger, nºs 2945, 2947). O Syllabus foi publicado em anexo à encíclica Quanta cura, em que se sublinhava o erro fundamental: “essa opinião errónea, a mais fatal para a Igreja Católica e a salvação das almas, a saber: que a liberdade de consciência e de cultos é um direito próprio do homem”. A liberdade de consciência e de opinião (Denziger, nºs 2730,2731, citando S. Agostinho:”quae peior mors animae, quam libertas erroris?”) que já fora condenada por Gregório XVI na encíclica Mirari vos arbitramur de 1832, voltaria a sê-lo (Denziger nº 3250), bem como a liberdade de religião (Denziger, nº. 3252) por Leão XIII, na Libertas prestantissimum de 1880, o qual repetiria a reprovação da separação entre Estado e Igreja (Denziger, nº 3172) na Immortale Dei, em 1885.

Neste contexto, foi em clima de quase guerra religiosa que a separação da Igreja e do Estado foi decretada em 1905 na França – as Constituições de 1946 (artigo 1º) e de 1958 (artigo 2º.) declaram que a França é uma república “laica” e que o ensino público é “laico” (preâmbulo da Constituição de 1946 para que remete o preâmbulo da de 1958) – e em 1911 em Portugal (Lei da Separação do Estado das igrejas de 20 de Abril de 1911). Os nºs. 8º e 9º, sobre a liberdade do culto público de qualquer religião, e 10º, sobre a neutralidade do ensino público, do artigo 3º da Constituição de 1911 pressupõem, mas não consagram expressamente, a separação, que só surgirá expressamente formulada no artigo 46º. da Constituição de 1933. O carácter odioso da Lei da Separação revelava-se, por exemplo, no seu artigo 181º, o qual mantinha unilateralmente, violando a liberdade religiosa e de expressão, o beneplácito na sua interpretação extensiva à publicação das determinações dos próprios prelados e outras autoridades eclesiásticas nacionais. A Lei da Separação foi imediatamente condenada pela encíclica Jamdumdum in Lusitania (1911) de Pio X. A própria Constituição de 1911 violava directamente a liberdade religiosa ao proibir a Com
panhia de Jesus e todas as congregações religiosas e ordens monásticas (nº 12 do artigo 3º).

O regime de separação só foi reintroduzido – não obstante a enganadora identidade verbal – com a Constituição de 1976. Só que agora não em clima, de guerra, mas de consenso. O facto explica-se, em grande parte, pela mudança radical, operada em 1965, pela declaração Dignitatis humanae do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa. A história do Concílio revela que se começou por afastar um esquema que partia do “Estado católico como tese (segundo a concepção de Leão XIII e em que a separação era considerada como hipótese “infeliz”, mas tolerada (nas linhas do discurso Ci riesce de Pio XII de 1953 sobre a tolerância, segundo o qual: “Primeiro, o que não corresponde à verdade e à norma moral não tem objectivamente direito algum nem à existência, nem à propaganda, nem à acção. Segundo: o não impedi-lo por meio de leis estatais e disposições coercivas pode, contudo, justificar-se pelo interesse de um bem superior e mais universal ” – Documentos Pontifícios, V, p. 436), para se acabar por optar por um esquema que claramente a pressupõe (cfr. Henri Fesquet, O Diário do Concílio, 1967-8, I pp. 248, 308-310, II, pp. 84-85, 328-336, III, pp. 38-49, 54-79, 313-321). A declaração apoia-se directamente na doutrina de Cristo e dos apóstolos, reconhecendo que ” na vida do Povo de Deus … houve por vezes modos de agir menos conformes e até contrários ao espírito evangélico” . Ainda assim, “a Igreja manteve sempre a doutrina de que ninguém deve ser coagido a acreditar. O fermento evangélico trabalhou assim longamente o espírito dos homens e contribuiu muito para que eles, com o decorrer do tempo, reconhecessem mais plenamente a dignidade da sua pessoa e amadurecesse a convicção de que, em matéria religiosa, esta devia ficar imune de qualquer coacção humana na vida social” (nº 12: Concílio Ecuménico Vaticano II, 8ª ed., 1979, p. 272). Estabelece-se a distinção entre o dever moral “de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar” do plano jurídico da “imunidade de coacção na sociedade civil” (nº 1, p.265), sem a qual “os homens não podem satisfazer a esta obrigação de modo conforme com a sua própria natureza” (nº 2, p.266). O direito à liberdade religiosa, que é reconhecido em todas as dimensões, funda-se “realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torna um direito civil”, que “permanece ainda naqueles que não satisfazem a obrigação de buscar e aderir à verdade ; e desde que se guarde a justa ordem pública, o seu uso não pode ser impedido” (ibid.). Parece implicar-se a possibilidade de concordatas, uma vez que se admitem regimes especiais, mas sem discriminação, quando se diz: “Se, em razão das circunstâncias particulares dos diferentes povos, se atribui a determinado grupo religioso um reconhecimento civil especial na ordem jurídica, é necessário que, ao mesmo tempo, se reconheça e assegure a todos os cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa. Finalmente, a autoridade civil deve tomar providências para que a igualdade jurídica dos cidadãos … nunca seja lesada, clara ou larvarmente, por motivos religiosos, nem entre eles se faça qualquer discriminação ” (nº 6, p.269). Quanto à educação religiosa nas escolas, a declaração diz: aos pais “cabe o direito de determinar o método de formação religiosa a dar aos filhos, segundo as próprias convicções religiosas. E, assim, a autoridade civil deve reconhecer aos pais o direito de escolher com verdadeira liberdade as escolas e outros meios de educação; nem, como consequência desta escolha, se lhes devem impor, directa ou indirectamente, injustos encargos. Além disso, violam-se os direitos dos pais quando os filhos são obrigados a frequentar aulas que não correspondem às convicções religiosas dos pais, ou quando se impõe um tipo cívico de educação do qual se exclui totalmente a formação religiosa ” (nº5, p.268). À luz desta passagem se deverá entender a seguinte doutrina do Concílio na declaração Gravissimum educationis sobre a educação cristã (1965): ” a Igreja louva aquelas autoridades e sociedades civis que, tendo em conta o pluralismo da sociedade moderna e atendendo à justa liberdade religiosa, ajudam as famílias para que
a educação dos filhos possa ser dada em todas as escolas segundo os princípios morais e religiosos das mesmas famílias ” (nº7: Concílio, ed. cit., p.208).

A primeira conclusão a tirar só pode ser a de que a partir de 7 de Dezembro de 1965, data da promulgação da Dignitatis humanae, o regime jurisdicionalista estabelecido pela Concordata de 1940 deixou de ser conforme à doutrina da Igreja Católica. Por consequência, também o Protocolo Adicional de 15 de Fevereiro de 1975, aprovado para ratificação pelo artigo único do Decreto-Lei nº 187/75, de 4 de Abril, ao alterar o artigo XXIV da Concordata, que passou a esclarecer que a generalização da faculdade civil de requerer o divórcio a todos os cidadãos, incluindo os católicos, não altera a obrigação religiosa e moral destes, segundo a Igreja, de não exercerem tal faculdade, não é mais do que uma aplicação da doutrina conciliar de que não é lícito ao Estado impor coercivamente uma prática religiosa. Com isto não se ignora que tal prática corresponde, segundo a Igreja, a uma obrigação moral de qualquer pessoa. Mas quando o seu juízo moral não é partilhado através da lei pela maioria da população no Estado democrático, a Igreja, segundo o Concílio, “não coloca a sua esperança nos privilégios que lhe oferece a sociedade civil” : resta-lhe “pronunciar o seu juízo moral mesmo acerca das realidades políticas, sempre que os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem e utilizando todos e tão só aqueles meios que são conformes com o Evangelho e, segundo a variedade dos tempos e circunstâncias, são para o bem de todos (Lumen gentium, nº 76: Concílio, cit.,p.406).”Porque a energia que a Igreja pode insuflar à sociedade civil consiste nessa fé e caridade [que é a sua], e não em qualquer domínio externo, actuando com meios puramente humanos” (ibid., nº 42, p.374). Também é claro que a confirmação, pelo artigo II do Protocolo Adicional, das restantes disposições da Concordata era anacrónica e se explicava por razões de oportunidade.

A segunda conclusão a tirar é a de que a Constituição de 1976, ao consagrar a liberdade religiosa e a separação entre o Estado e a Igreja, veio pôr o direito português de acordo com a doutrina católica, de modo a que o consenso que caracterizou a votação dos artigos 41º e 43º se explica logicamente pela coerência objectiva dos deputados católicos que a votaram com a doutrina da Igreja. Não se tratou, portanto, de um retorno a 1911, o que tem consequências ao nível da interpretação. Não se pretende agora que “a República não reconhece, não sustenta, não subsidia culto algum” (artigo 4º da Lei de Separação): sem algum reconhecimento não podem as igrejas e comunidades religiosas exercer os direitos colectivos que lhes são atribuídos no artigo 41º e o Estado deve subsidiar a sociedade no ensino e na cultura, inclusivamente da religião.
Pretende se, sim, consagrar a liberdade de consciência, de religião e de culto com todos os seus elementos: em primeiro lugar, a liberdade individual de consciência e de religião, em ambos os casos como liberdade de convicção e de prática, quer em privado quer em público, incluindo as liberdades de ter, de não ter, de mudar e de deixar de ter religião, a liberdade de expressão da religião, incluindo o direito ao silêncio em matéria religiosa, as liberdades de informação, de educação e de cultura religiosas, de educação religiosa ou não religiosa dos filhos, as liberdades individuais de culto, de ensino, de criação de escolas confessionais privadas e cooperativas, de proselitismo, o direito à objecção de consciência, o direito subjectivo ao respeito de todos estas liberdades por terceiros e pelo Estado, a não ser coagido nem perseguido por causa ou em matéria de religião, à igualdade e não-discriminação religiosas, o direito à independência de direitos civis e políticos da religião; em segundo lugar, a liberdade das igrejas e outras comunidades religiosas de organização, de exercício das suas funções, de culto, de ensino da religião praticado no âmbito da respectiva confissão, de criação de escolas confessionais particulares e cooperativas, de proselitismo, de utilização de meios de comunicação social próprios, o direito de reconhecimento e de celebração de acordos ou concordatas com o Estado; em terceiro lugar, a imunidade dos indivíduos e das igrejas e comunidades religiosas de qualquer poder do Estado em matéria de liberdade religiosa, o direito à não interferência do Estado na esfera religiosa e à separação do Estado, como direito à separação pessoal e organizatória e como direito à neutralidade do Estado, nos dois aspectos, em especial como direito à não confessionalidade do ensino. A liberdade religiosa desemboca assim no princípio da separação dos poderes como seu elemento. Não cabe aqui deduzir da Constituição cada um destes elementos, mas o enunciado que deles fazem os artigos 41º e 43º basta para verificar que nenhuma das dimensões de liberdade religiosa reclamada pela Igreja fica fora da garantia constitucional. Temos, portanto, afinal uma “concórdia”, embora não a “concórdia” do Estado católico, desejada pela Igreja antes do Concílio, mas a concórdia do entendimento comum, fundado na dignidade da pessoa humana e no Estado de direito, da liberdade religiosa e do princípio da separação. Nas palavras da Dignitatis humanae: “Existe, portanto, harmonia entre a liberdade da Igreja e aquela liberdade religiosa que a todos os homens e comunidades se deve reconhecer como direito a sancionar juridicamente” (nº 13º, p.273).

A terceira conclusão a tirar é a de que todas as disposições da Concordata de 1940 que estabelecem privilégios da Igreja Católica ou direitos in sacra do Estado foram revogadas pela Constituição. A Igreja Católica não deixa de ser uma entidade de direito público, tanto interno como internacional, competente para celebrar concordatas e outros acordos com o Estado, em matérias de interesse comum. Mas tais concordatas e acordos tem de respeitar os princípios da liberdade religiosa, da separação e da igualdade. São formas de concretizar a liberdade religiosa que, por força do princípio da igualdade, imediatamente aplicável, são extensivas a outras igrejas e comunidades religiosas que delas se queiram prevalecer. É nestes termos que se tem de interpretar o artigo XXI da Concordata, enquanto parte integrante do direito português, para saber se sofrem de inconstitucionalidade formal ou material as disposições em causa das Portarias nºs 333/86 e 831/87.

3. O princípio da separação do Estado das igrejas e outras comunidades religiosas é consagrado no nº 4 do artigo 41º da Constituição. Se não estivesse expressamente previsto, deduzir-se-ia logicamente da liberdade de religião, que abrange nomeadamente os seguintes elementos: liberdade das igrejas e outras comunidades religiosas de organização, de exercício das suas funções (podendo incluir-se nesta liberdade as liberdades, constitucionalmente especificadas ou implicadas, de ensino da religião, praticado no âmbito da respectiva confissão, de criação de escolas confessionais particulares e cooperativas, de proselitismo e de utilização de meios de comunicação social próprios) e de culto, imunidade dos indivíduos e das igrejas e outras comunidades religiosas, na esfera da liberdade religiosa, de qualquer poder do Estado; direito à não interferência do Estado nessa esfera; direito à neutralidade do Estado (que se especifica constitucionalmente num dos aspectos do direito à não confessionalidade do ensino); direito de reconhecimento e de celebração de acordos e concordatas com o Estado. Assim entendida, a liberdade religiosa contém em si todos os elementos constitutivos do regime de separação que é garantido pela Constituição e implica os dois elementos nucleares constitutivos da própria separação: a separação pessoal e organizativa do Estados das igrejas e doutras comunidades religiosas que é implicada pela liberdade de organização autónoma destas, imune de qualquer poder do Estado nessa esfera (nº 3 do artigo 41º), e a neutralidade religiosa do Estado, especialmente consagrada no nº 2 do artigo 43º como neutralidade de directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas na programação da educação e da cultura. Teremos assim dois princípios em que se analisa o da separação: o princípio da separação pessoal e o princípio da neutralidade.

O princípio da separação pessoal do Estado das igrejas e outras comunidades religiosas é o mais evidente elemento do princípio da separação, como diz Krüger: “ele visa em primeiro lugar todo o entrelaçamento organizativo entre Estado e Igreja, dirige-se portanto contra fenómenos como o Regimento eclesiástico do monarca [nos Estados luteranos alemães o monarca era, em união pessoal, o bispo superior da igreja do Estado], a união de ofícios eclesiásticos e escolares ou inversamente, a qualidade de membro de instituições estatais, como por exemplo, da primeira câmara, por dignidades espirituais em razão do seu ofício. De tal separação organizatória segue-se que nem o Estado relativamente à Igreja nem a Igreja relativamente ao Estado podem colaborar ou pronunciar-se no ordenamento da organização ou no provimento dos ofícios” (Allgemeine Staatslehre, 2ª ed., 1966, p.49). O princípio da separação pessoal implica em especial a proibição de representação dupla do Estado ou do povo, por um lado, e da Igreja, da comunidade religiosa ou de Deus, por outro, no exercício da mesma função. Pretendem-se excluir situações como as da monarquia liberal em que, por exemplo, os bispos eram, por direito próprio, pares da Câmara Alta, ou em que os párocos eram os presidentes da Junta de Paróquia. Não basta a diferença de papéis ou funções, que também existe nos regimes de religião do Estado: o bispo ou o pároco não administra sacramentos em nome do Estado e não vota na Câmara nem preside à Junta em nome da Igreja. A diferença de funções implica uma diferença da representação relevante em cada caso. O que se proíbe é que o bispo, por direito próprio, delibere na Câmara Alta ou o pároco, nessa qualidade, presida à Junta de Paróquia. Não se proíbe tão pouco que a mesma pessoa acumule funções diversas: o pároco pode ser deputado, mas não como pároco, sobretudo, deve poder publicamente distinguir-se se actua em nome do Estado ou da Igreja. Por isso declaram-se inelegíveis o bispo pela sua diocese e o pároco pela sua paróquia. Para lá do condicionamento psicológico, pretendia-se mesmo na monarquia garantir-se assim a separação das duas instituições no Parlamento (cfr., Acórdão nº 602/89, Diário da República, II Série, de 6 de Abril de 1990, p. 3595 e segs.).

Pretende evitar-se a confusão pública, que consistiria em não se saber se estavam a falar em nome do Estado ou em nome da Igreja. A Constituição não exceptua este princípio, ao admitir, no nº 2, in fine, do artigo 36º, a forma canónica de casamento, pois o sacerdote que representa a Igreja no casamento não representa o Estado como funcionário ou agente do registo civil: pratica certos actos de registo como sacerdote. Mas há neste caso uma confusão pública porque não é publicamente reconhecível que não age também na qualidade de agente do Estado pelo que a Constituição abre no nº 2 do artigo 36º excepção ao alcance do princípio da separação pessoal. Só que a excepção justifica-se pois não há outra maneira de garantir a liberdade de casamento religioso, como forma de exercício da religião. Vistas as coisas no sentido inverso, o princípio da separação pessoal e organizatória proíbe, por exemplo, que o governo do Estado intervenha na função de organização eclesiástica da escolha dos bispos, mesmo através de uma consulta ou de um veto político indicativo (como no artigo X da Concordata). Por maioria de razão proibirá que um funcionário do Estado, o professor de ensino primário público ensine os seus próprios alunos na sua escola como professor de religião da Igreja Católica, no exercício integral e exclusivo (por diferença da hipótese anterior de mera colaboração na escolha) da função eclesiástica de ensino da religião “praticado no âmbito da respectiva confissão” (nº 5 do artigo 41º).

O princípio da neutralidade do Estado significa a sua “não-identificação” (Krüger) religiosa e ideológico-normativa (e com Estados com várias nações a sua não identificação nacionalista, sob pena de “balcanização”). É uma consequência da generalidade da lei e do Estado e do princípio da igualdade. Ora o princípio da não-confessionalidade do ensino público é um corolário do princípio da separação nas suas duas dimensões. Implica, portanto, na primeira vertente, a proibição da dupla representação, do Estado e da Igreja Católica, pelos mesmos agentes de ensino no exercício da sua função de professores. Não basta dizer, para afastar o argumento, que o professor do Estado, enquanto professor de religião católica no âmbito da religião católica, não representa o Estado, mas a Igreja. Isso é o que acontece em todos os casos de confusão pessoal de cargos, no regime de religião do Estado. E não é publicamente reconhecível que esteja excluída a representação do Estado quando se trata de uma função que o mesmo agente cumulativamente exerce em nome do Estado na mesma escola, perante os mesmos alunos, no mesmo horário. Para que a confusão exista já basta a integração na mesma actividade pedagógica oficial, seja ela definida como actividade docente do professor na escola (na hipótese, na escola e na turma), seja definida como actividade discente do aluno no seu horário de turma. A dupla representação não é excluída pelo diferente regime pedagógico, como seja a voluntariedade de frequência que existe em todas as disciplinas de opção, seja opção relativa, como entre as disciplinas de Inglês e de Francês, ou de Desenvolvimento Pessoal e Social e de Educação Moral e Religiosa Católica ou de outras religiões (artigo 7º do Decreto-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto), seja opção simples, como a Música ou Desporto, se forem ministradas pela escola neste regime. O regime da disciplina de Religião e Moral Católicas estabelecido pela Portaria nº 333/86 não garante assim a separação entre a organização do Estado e as organizações das igrejas que é exigida pelos princípios da separação do Estado das igrejas e da não confessionalidade do ensino.

B) A ofensa da liberdade individual de religião

4. Quanto à questão de saber se os artigos 2º, 11º e 14º, ao atribuírem a docência da Religião e Moral Católicas aos professor de turma, ofendem a liberdade indi-vidual de religião, reconhecida no nº 1 do artigo 41º, partilho no essencial as razões dos votos de vencido que respondem positivamente. Apenas notarei dois pontos.

Em primeiro lugar, não está apenas em causa a liberdade religiosa dos alunos não católicos. A liberdade de religião, ligada ao princípio da separação, implica o direito a não estar sujeito a influência religiosa por parte do Estado, que se revela especialmente no reconhecimento de uma reserva pessoal de convicção religiosa ligada à obrigação do Estado de não dirigir perguntas ao indivíduo acerca das convicções ou prática religiosa deste. Ora esse direito não é disponível, não é possível renunciar a ele por convicção religiosa. Por isso, é ofendido mesmo na pessoa daqueles alunos que não têm objecção a essa influência.

5. Não partilho a opinião de que os artigos 2º, 11º e 14º também ofendem o princípio da igualdade (nº 2 do artigo 13º da Constituição), na medida em que estabelecem um regime exclusivo dos católicos. Essa opinião pressupõe a inexistência de uma liberdade colectiva das igrejas e comunidades religiosas como uma das dimensões da liberdade de religião contra o teor literal do nº 4 do artigo 41º. Sendo uma liberdade colectiva o Estado não a pode garantir nem cumprir as obrigações correlativas aos direitos subjectivos nela englobados, sem a colaboração das igrejas e comunidades religiosas. É o que acontece nomeadamente com a liberdade colectiva de ensino da religião no âmbito da confissão católica. O exercício deste direito implica o direito de celebrar acordos com o Estado e eventualmente concordatas, em condições iguais para todas as confissões.

II- A INCONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA Nº 831/87

6. Sendo a Portaria nº 831/87 instrumental relativamente às normas materialmente inconstitucionais do Decreto-Lei nº 323/83, é também, por consequência, materialmente inconstitucional. Mas é também organicamente inconstitucional porque o Decreto-Lei nº 323/83 não pode autorizar o que a concordata não autoriza. Ora as escolas normais nunca estiveram incluídas na concordata. As palavras “escolas públicas médias” não se referiam em 1940 às escolas de formação de professores primários. Ensino “médio” (cfr., Enciclopédia Verbo) é ensino ministrado entre o ensino elementar e o superior. É, sem dúvida, o sentido do texto italiano que faz igualmente fé. Ainda hoje o artigo 9º, nº 2, da concordata italiana (Acordo entre a Itália e a Santa Sé de 18 de Fevereiro) exclui o ensino superior do âmbito da concordata, além de que distingue o ensino “médio” do ensino “médio-superior”, o que confirma a interpretação dada.

Finalmente, a existência de uma disciplina de Religião e Moral Católica sem carácter científico na Universidade contraria a essencial vocação científica da Universidade, uma vez que a Constituição recebeu o respectivo conceito histórico (cfr. o meu voto de vencido no acórdão nº 220/92, Diário da República, I Série-A, de 28 de Julho de 1992, p. 3527 ss.). A Portaria nº 831/87 é, assim, materialmente inconstitucional também por violação do artigo 76º, nº. 2, da Constituição. Não se nega neste entendimento o carácter científico da Teologia, mas apenas que esse carácter esteja garantido pela disciplina em causa. A Portaria apenas garante que “os educadores de infância e professores do 1º ciclo do ensino básico com aproveitamento na disciplina consideram-se aptos a assumirem a responsabilidade da educação moral e religiosa dos seus alunos …”(artigo 9º), o que é mais uma flagrante violação do princípio da separação (além de violar a imunidade da Igreja Católica em matéria do ensino da religião no seu âmbito e, assim, a liberdade de religião). Só que esta última violação, reveladora do espírito jurisdicionalista da regulamentação sub judice, não foi invocada no pedido.

José de Sousa e Brito